culturas negras no mundo atlântico



sound system em salvador; luta de arena em dakar; performances no harlem, ny; carnaval em londres; cafés literários na martinica; emancipation celebration em trinidad; salões de beleza afro em paris; artes visuais em luanda; festival de vodum em uidá. a terceira diáspora é o deslocamento virtual de signos - discos, filmes, cabelos, slogans, gestos, modas, bandeiras, ritmos, ícones - provocado pelo circuito de comunicação da diáspora negra. potencializado pela globalização eletrônica e pela web, coloca em conexão digital os repertórios culturais de cidades atlânticas. uma primeira diáspora acontece com os deslocamentos do tráfico de africanos; uma segunda diáspora se dá pela via dos deslocamentos voluntários, com a migração e o vai-e-vem em massa de povos negros. diásporas_estéticas em movimento.
livros completos para download

livro 1


livro 2

quem sou eu

Minha foto
antropóloga, viajante e fotógrafa amadora, registro cenas do cotidiano em cidades negras das américas do norte e do sul, caribe, europa, áfrica e brasil, sobre as quais pesquiso, escrevo e realizo mostras audiovisuais. meu porto principal é salvador da bahia onde moro. Goli edits the blog www.terceiradiaspora.blogspot.com from Bahia Salvador, is a traveller and amateur photographer who recorded scenes of daily life in the atlantic cities about which she writes and directs audiovisual shows. She has a post-doctorate in urban anthropology and is the author of the book "The Plot of the Drums - african-pop music from Salvador" and "Third Diaspora - black cultures in the atlantic world".

quarta-feira, 18 de junho de 2014

cena musical afro-baiana - impressionismo e transversalidade | Follow Science

A cena musical afro-baiana - impressionismo e transversalidade | Follow Science

cena musical afro-baiana -impressionismo e transversalidade

por goli guerreiro

um olhar impressionista – os blocos afro de salvador

            São Paulo, verão de 1988.  Nina resolveu passar a noite de sexta-feira em casa. Ligou a televisão e pegou um livro de Antônio Risério Carnaval Ijexá que um de seus amigos baianos lhe emprestou. O livro anunciava a emergência de uma consciência afro entre os jovens negro-mestiços de Salvador no início dos anos 80. Mesmo interessada na leitura, uma matéria na TV lhe chamou a atenção. O tema era a novidade musical que vinha da Bahia: a música percussiva produzida pelos blocos afro-carnavalescos de Salvador.  Ela aumentou o volume e acompanhou a matéria com grande interesse. 
            A mídia anunciava que em Salvador os blocos afro haviam inventado o samba-reggae, um novo ritmo que mesclava samba duro com reggae jamaicano, transformando a música em bandeira política com força suficiente para barganhar cidadania para o negro baiano, chamando atenção para a vitalidade da cultura negra na Bahia. O interesse de Nina pela velha cidade aumentou depois de ter visto aquelas imagens. O que mais a impressionou foi a performance corporal dos percussionistas, que elaboravam coreografias vigorosas enquanto tocavam seus tambores.
            Nina  é dançarina, estuda dança moderna desde criança e seu antigo interesse por Salvador estava relacionado com sua vocação artística. Ela é uma garota branca paulistana, classe média, que quando concluiu o segundo grau pensou em mudar de cidade para se profissionalizar em alguma das poucas universidades do país que oferecem cursos de dança. A Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia era uma opção. Na verdade, o que Nina desejava mesmo era conhecer novas possibilidades dentro do mundo da dança.
            Na manhã seguinte Nina desceu para comprar jornais. Ao pegar a Folha de São Paulo  ela quase não acreditou quando leu o título de uma matéria: “A Bahia virou Jamaica”, publicada na Ilustrada. Era muita coincidência. Depois de ler toda a página que traçava um perfil do movimento musical afro-baiano, Nina teve certeza que alguma coisa de muito forte e criativa estava acontecendo na paisagem sonora de Salvador nos últimos anos da década de 80, pois a imprensa estava dando uma atenção especial à Bahia.
            As notícias veiculadas pela mídia animavam as conversas de Nina com seus amigos baianos sobre Salvador. Eles lhe asseguravam que uma efervescência musical se espalhava pelos três cantos da península triangular que avança para o mar desenhando, de um lado, a Baía de Todos os Santos e, de outro, o Oceano Atlântico. Os tambores que soavam de Itapagipe a Itapuã começavam a enviar seus sinais para o resto do Brasil.
            Nina já estava acostumava a ouvir estórias sobre o cotidiano de Salvador e escutar discos de novos talentos locais. Algumas canções baianas passaram a fazer parte de seu repertório preferencial, como a  música  de Gerômino Eu sou negão, veiculada em Salvador no verão de 87, transformada num verdadeiro manifesto afro, atraíra particularmente a dançarina por causa da diversidade rítmica. O autor da canção era freqüentador dos populosos bairros negro-mestiços da cidade, vistos como "guetos", como Pelourinho e Liberdade. Nestes espaços, Gerônimo se encharcou de música caribenha e não hesitou em misturá-la com o ritmo ijexá do candomblé, do qual é adepto. Nina adorava a fala do cantor que reproduzia uma cena do Carnaval de Salvador:

“(..) e aí chegaram os negros com toda a sua beleza, sua cultura,  sua tradição, com toda sua religião,  tentada, motivada a ser mutilada pelos heróis brancos da história e estamos aqui, eles sobreviveram no bum bum bum, no seu tambor e o negão vai cantando assim: pega a rua Chile desce a ladeira tá na Praça Castro Alves, fazendo seu deboche, transando o corpo, e o negão assume o microfone e na beirada da multidão em cima do caminhão ele fala: ‘Alô rapaziada do bloco, esse é o nosso bloco afro, vamos curtir agora o nosso som, a nossa levada que é a nossa cultura e segura comigo: Eu sou negão, eu sou negão/ meu coração é a liberdade/ sou do Curuzu, Ilê, igualdade nagô / essa é a minha verdade’. E de repente aparece ao longe um carro todo iluminado é um trio elétrico. ‘Que é isso meu irmão? Venha devagar, calma, segura essa aí’ e o cara do trio lá de cima olha: ‘legal, massa, pessoal do bloco afro, é uma beleza tá aqui com vocês, vamos levar o som’ e o negão lá de baixo falando: ‘qual é meu irmão aqui é boca de zero nove, é o suingue d’a gente, vá pegue seu caminhão e siga seu caminho que a gente vai seguir o nosso, e na levada:  Eu sou negão, meu coração é a liberdade/  eu sou negão’ (...)”.

Seus amigos lhe disseram que a música havia sido composta de improviso durante o Carnaval de 86, quando Gerônimo assistiu a invasão do espaço do bloco afro pelos seis mil watts de potência sonora do trio elétrico. Situação bastante comum no período da festa carnavalesca, quando se arma uma disputa de espaço entre as manifestações musicais negras (acústico-percussivas) e brancas (elétrico-harmônicas). O compositor começou a narrar o que via e, lutando por um melhor espaço-posição para os negros da Bahia, compôs a canção. Segundo Gerônimo, “o que estava em jogo naquele momento era a luta pelo respeito às manifestações negras. E a gente não queria isso só no Carnaval não”.
            O  reggae de Gerômino foi um hit no verão de 87 e transformou o sentido do termo negão. Todo adepto do movimento musical afro-baiano passava a se chamar assim. Negão qualificava um negro consciente de sua negritude, que tem um pé na África e outro na Jamaica, exibe roupas coloridas e reverencia Bob Marley, num linguajar cheio de gírias inspiradas na língua iorubá. Enquanto pretos e brancos de Salvador cantavam em uníssono “Eu sou negão”, Caetano Veloso se perguntava “Eu sou neguinha?” no seu disco Caetano (1987), onde na capa do álbum, contempla um negro e um mar buscando tornar indistinguíveis as paisagens da África e da Bahia.
           Nina se encantava com estes relatos, mas de tudo o que ela ouviu o que mais a impressionou foi o samba-reggae Faraó, de Luciano Santos, compositor do Olodum. A letra da canção estabelecia uma relação entre os Faraós do Egito e os negros baianos. Um de seus amigos lhe contou que "nos ensaios a letra foi aprendida desde outubro, com a ajuda de um folheto impresso. O refrão era cantado por todos, começava a se espalhar pela cidade, tinha melodia e palavras diferenciadas que lhe davam um toque especial. E outro lhe disse que “logo a discussão extrapolava o Olodum e atingia a comunidade. O Egito iria despertar grande interesse, principalmente com tão impressionante novidade: as pirâmides, toda a grandeza da civilização antiga, na verdade era uma obra da raça negra”.
           “Deuses, divindade infinita do universo/ predominante esquema mitológico/ a ênfase do espírito original ‘Chu’ / formará no éden o ovo cósmico/ a emersão nem Osiris sabe como aconteceu/ a ordem ou submissão do olho seu/ transformou-se na verdadeira humanidade/ epopéia do código de Gueb e Nut gerou as estrelas/ Osiris proclamou matrimônio com Isis/ e o mal Seth, irado o assassinou em Per-AÁ/ Horus levando avante a vingança do pai/ derrotando o império do mal Seth/ ao grito da vitória que nos satisfaz/ Tutancâmon, iê iê Gizé/ Akahenaton, iê iê Gizé/ Eh Faraó, clama Olodum-Pelourinho(..)”.
           Com a força do "correio nagô", que atualiza de boca em boca as novidades locais, o samba-reggae Faraó, que se tornou conhecido primeiramente pelas pessoas que freqüentavam os ensaios do Olodum, se espalhou pelas ruas da cidade, passando a ser tocado e cantado durante as festas de largo que começam em dezembro na Conceição da Praia, antigo cais da cidade da Bahia e se estendem até o Carnaval, a maior das festas de rua. Pensando em música e mar, Nina decidiu passar o resto do verão em Salvador.
        Nina desembarcou no aeroporto de Salvador numa tarde de fevereiro de 1988 cheia de expectativa. Na sua imaginação a cidade era um grande salão de dança de rua e ela queria conhecer de perto os dançarinos afro que se moviam ao som de ritmos vigorosos exibindo sua expressão corporal sedutora. Por recomendação dos amigos, hospedou-se em um albergue no Porto da Barra, uma praia mítica onde as pessoas costumavam aplaudir o pôr-do-sol e se banhavam cercadas por estrelas do quilate de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
           Nina ficou encantada com a paisagem do Porto da Barra, uma pequena baía, delimitada por antigos fortes, de onde se avista a Ilha de Itaparica. E ela achou que não poderia haver uma praia urbana mais aconchegante. Nina  queria também visitar logo a primeira escola de dança do Brasil e não tardou a localizar o endereço da Escola de Dança da UFBA. Pegou um ônibus no Porto da Barra para ir até o Terreiro de Jesus, onde ficava a Escola. Quase perdeu a parada, pois ficou entretida com a batucada de uns moleques, no fundo do ônibus, feita a partir de instrumentos improvisados: a  madeira do recosto dos bancos, cadernos, canetas que serviam de baquetas, além de um pequeno surdo que um deles portava. Quando Nina chegou à escola sofreu uma grande decepção: descobriu que a dança afro não fazia parte da grade curricular. Demorou um pouco a acreditar na informação. Como era possível a Escola de Dança da Bahia, não oferecer cursos nesta especialidade?
           Conversando com alguns estudantes no pátio da Escola, Nina ficou sabendo que as escolas de dança afro proliferaram em Salvador, atraindo uma grande parcela de jovens, que antes estudava ballet clássico ou dança moderna. Uma das alunas sugeriu que ela fosse aos shows das bandas de trio que acontecem nos clubes da cidade. Mas Nina já estava decidida a ver a dança da Bahia nos espaços onde ela tinha ganhado forma: os bairros negros da cidade, onde os blocos afro ensaiavam. Uma vez tomada a decisão, não perdeu mais tempo: pôs-se a visitar os bairros onde os blocos afro tinham nascido. Ela queria ouvir o samba-reggae, ver os percussionistas executando seus instrumentos nas quadras de ensaios, descobrir os segredos da gestualidade afro-baiana, aprender as coreografias, conversar com os integrantes dos grupos, para conhecer de perto a riqueza da cultura negra na Bahia . Para isso era preciso percorrer o mapa musical da cidade. A viajante foi metódica: resolveu começar pelo primeiro bloco afro de Salvador: o Ilê Ayiê.

Ilê Aiyê da Liberdade

           Com o mapa da cidade nas mãos, se informou com a dona do Albergue como chegar a Liberdade, o bairro de origem do Ilê Aiyê. Da janela do ônibus, reparou o traçado diferenciado na periferia urbana, que desenhava o maior bairro negro-mestiço da América Latina. Lendo o livro de Antônio Risério ela descobriu que os pretos da Liberdade haviam sido os primeiros a manifestar sinais da consciência de negritude procurando demonstrá-la através das roupas coloridas, dos cabelos trançados, das gírias africanizadas e sobretudo pela sua musicalidade percussiva.
           O bloco afro Ilê Aiyê e o bairro da Liberdade ( mais especificamente a área conhecida como Curuzu, onde se situa sua sede) são indissociáveis. Nesse bairro nasceu e se cristalizou a idéia de mostrar o universo negro em sua grandeza e modificar a auto-imagem dos pretos de Salvador. Mobilizados em torno do Carnaval, um grupo de moradores da Liberdade elaborou um tipo de organização carnavalesca cuja música mesclava o samba duro com a batida matriz Ijexá, originária dos candomblés. Nina queria ver e ouvir tudo isso.
           "Ilê Aiyê a tua força vem do teu cantar/ Zumbi mandou dizer que o Ilê é o torrão da vida/ iremos com toda raça unida/ (..) Ilê Ayiê vai se acender feito clarão/ na terra mãe do nosso coração/ Ilê Aiyê é que vai ser o nosso chão/ p'ra se fundar de novo uma nação/ Salvador magia, Curuzu, Bahia/ que felicidade é a festa do Ilê/ o Ilê é liberdade" .
           Nina perguntou ao motorista onde ficava a ladeira do Curuzu. Desceu do ônibus e resolveu entrar num pequeno bar, puxou assunto com alguns negros jovens que estavam por ali tomando cerveja. Explicou-lhes que queria conhecer o Ilê Aiyê e logo ficou sabendo detalhes sobre o bloco afro mais respeitado da Bahia. Um dos rapazes lhe disse que o nome inicial escolhido para o bloco foi “Poder Negro”, mas isso gerou problemas com a polícia que via ali uma ameaça de levante dos negros. “Como estávamos impedidos de adotar aquele nome, fomos consultar os búzios para encontrar outro. Foi indicado Ilê Aiyê que, em iorubá, significa “Casa de Negros”, “Abrigo de Negros” ou ainda “Terreiro de Negros”.
           Nina soube também que tanto o núcleo fundador do Ilê Aiyê quanto uma grande parcela dos integrantes do bloco são ligados aos terreiros de candomblé. O próprio nome do bloco foi indicado pelo jogo de búzios. Também a saída do bloco do Curuzu para o centro da cidade no sábado de Carnaval recria um ritual inspirado do universo religioso, o padê. Uma das fundadoras do bloco, Mãe Hilda, que é  mãe de santo, solta pombos brancos na sede do bloco, ao pé da ladeira, pedindo proteção para seus filhos. O ritual é a senha para a tradicional subida da ladeira do Curuzu, que já rendeu letras de canções e reúne todos os anos milhares de afro-baianos e curiosos, de todas as cores, nos sábados de Carnaval.
           Nina se informou sobre o endereço da sede do Ilê Aiyê que estava mais abaixo da Ladeira, mas quando saiu do bar percebeu um som de tambores que vinha de cima e se dirigiu para lá. Era um evento reunindo o Ilê Aiyê e outro bloco afro, o Muzenza, também fundado na Liberdade. Foi a primeira vez que Nina viu os tambores na rua. Ficou extasiada com a força rítmica da música e com a alegria dos percussionistas que executavam seus instrumentos com enormes sorrisos estampados nos rostos. Todas as pessoas usavam torços amarrados na cabeça ou exibiam os cabelos trançados de variadas maneiras. Além disso havia a beleza das coreografias, o desenho da dança no espaço aberto. Os(as) dançarinos(as) pareciam flutuar em suas roupas multicoloridas.
           O Ilê Aiyê usa na estamparia dos tecidos e nos instrumentos, o vermelho do sangue derramado na escravidão, o amarelo do apogeu e do poder, o preto da cor e o branco da paz. O Muzenza usa as cores da bandeira da Jamaica, verde, amarelo e preto, pois o bloco estava completamente sintonizado com as ondas do reggae e seguia a filosofia dos rastafaris. Muitos trajavam camisetas com fotos de Bob Marley, usavam os cabelos em forma de gomos, e entoavam canções que reverenciavam o ídolo. Nina não sabia se estava diante da África ou da Jamaica.
           "Eh Mama África Mama África Muzenza/ rum pi lé rompeu a cor/ trazendo canção, amor, ijexá/ quem ouviu não vacilou se encantou e africanizado está/ a galera do mal, Muzenza, guerrilheiros/ Mama África/ Bob Marley semeou e o reggae se espalhou/ difundiu em Salvador/ jamaicanizados a galera do mal/ Muzenza guerrilheiros/ Mama África".
           Quando a música acabou Nina desceu a ladeira do Curuzu, em direção a sede do Ilê Aiyê, entretida com o movimento das pessoas nas calçadas, nas portas de suas pequenas casas onde mulheres conversavam, homens jogavam cartas e meninos batucavam em bacias de metal ou latas de manteiga que lhes serviam de tambores. Havia uma atmosfera peculiar. Em alguns momentos ela se sentia diferente por ser branca, em outros se sentia acolhida, como quando parou para comprar balas numa quitanda, montada na janela de uma casa, e retribuiu ao sorriso hospitaleiro da preta velha que os vendia ouvindo um rádio de pilha.
           Quando chegou à sede do bloco, teve a chance de visitar as oficinas de profissionalização que a entidade mantêm. Descobriu que a composição das roupas do Ilê Aiyê é cuidadosamente preparada a partir de pesquisas sobre povos e regiões da África que o bloco tematiza a cada ano. Nas oficinas, viu algumas mulheres preparando os torços estampados. Viu também a agilidade das mãos das trançadeiras. Se deu conta então, da grande preocupação estética do grupo. Imediatamente lembrou de uma música de Caetano Veloso:
           "Quando essa preta começa a tratar do cabelo/ é de se olhar/ toda a trama da trança/ a transa do cabelo/ conchas do mar/ ela manda buscar pra botar no cabelo/ toda minúcia toda delícia/ não me amarra dinheiro não, mas elegância/ dinheiro não, mas a cultura(..)".
           Aqueles versos estavam inscritos ali. Nina desejou ficar mais tempo, mas já era noite e ela se despediu das pessoas, depois de ser convidada para ver o ensaio do Ilê Ayiê nas noites de sábado no Forte de Santo Antônio, bairro vizinho ao da Liberdade. Nina voltou ao albergue com a sensação de ter visitado o Harlem soteropolitano. 

Ara Ketu de Periperi

           No dia seguinte decidiu que iria para bem longe da Liberdade, para o bairro de Periperi, reduto do bloco afro Ara ketu. Ao acordar vestiu uma roupa leve e pegou um ônibus que deveria levá-la até a Leste Brasileira, a estação onde pegaria o trem para o subúrbio ferroviário. No caminho, ela viu o Mercado Modelo. Resolveu descer para ver o artesanato local e acabou vendo também uma roda de capoeira jogada no pátio do Mercado em frente ao antigo porto de Salvador.
           Depois de apreciar o movimento dos barcos e de comprar frutas nas barracas que cercam a área, seguiu para o bairro da Calçada, onde fica a Estação. No trem, Nina ficou surpresa ao ver que os trilhos passavam junto ao mar e acabou desejando que o trajeto até fosse ainda mais longo. Ao descer na estação de Periperi informou-se sobre o caminho para o Esporte Clube Periperi onde funciona a sede do bloco. A proximidade do Carnaval explicava a grande movimentação no Clube pois havia ainda muita coisa a ser preparada para que o bloco realizasse um bom desfile.
           "Ara Ketu é meu, é seu, é de nós/ é de Deus é de lá sua voz/ Ara Ketu vai dar pra esse povo sofredor/ o mesmo alento que dá força aos fiéis / e ele vai lembrar de Zumbi libertador/ livrando o povo dos grilhões e das galés/ vai retumbar todo o chão de Salvador/ com seus tambores, atabaques e afoxés/ batam palmas que o Ara Ketu vai passar/ com suas alas de sinhôs e de sinhás/ e ele chega no balanço do ijexá/ trazendo a força e a proteção dos orixás".
           Observando os detalhes, Nina percebeu que os elementos do Ara Ketu em muito se assemelham aos do Ilê Ayiê e do Muzenza. A presença da africanidade era inquestionável. Os seus enredos contam a história do povo negro e homenageiam os deuses africanos. Oxossi, o orixá da caça é considerado protetor do bloco. Vera Lacerda, historiadora e presidente da entidade explicou porque: “O primeiro ano do Ara Ketu talvez tenha sido o mais importante. Nós havíamos escolhido como tema uma homenagem ao rei caçador. Isso porque nos búzios tinha dado que o orixá protetor do Ara Ketu era Oxossi. Inclusive o símbolo do bloco é o ofá que é símbolo de Oxossi”.
           Nina ficou curiosa para ver o ensaio do Ara Ketu pois soube que a efervescência era grande, sua capacidade de aglutinação de jovens negros era imensa, mas Periperi era muito longe da Barra e ela não teria como voltar à noite. Além disso, queria aproveitar o resto do dia para visitar o Parque São Bartolomeu, pois o Ara Ketu chamava a atenção para a necessidade de conservação da área, considerada espaço sagrado, pela presença de plantas de fundamental importância para os rituais dos candomblés. Consultando um folheto informativo que havia na sede, Nina soube que São Bartolomeu é apenas uma das áreas do Parque Metropolitano de Pirajá, "um dos remanescentes da Mata Atlântica que restam no Brasil, tem mais de 1.500 hectares de floresta. Antiga aldeia indígena, foi engenho e quilombo de negros fugidos da escravidão". Ela não queria perder a oportunidade de conhecer um parque de tamanha grandeza física e simbólica.

Malê Debalê de Itapuã
          
           No terceiro dia, Nina resolveu visitar o bloco afro Malê Debalê. Seguindo pela orla marítima, em direção ao litoral norte, está a praia de Itapuã e a lagoa do Abaeté, antiga aldeia de pescadores e mais tarde transformada em balneário para a classe média e alta, que já abrigou moradores ilustres como Dorival Caymmi e Vinícius de Moraes. Compositores famosos, imortalizaram o lugar com suas canções praianas que festejavam a  malemolência do povo, o sabor e o cheiro exalados pelos tabuleiros das baianas de acarajé, sem esquecer de descrever suas paisagens paradisíacas. Itapuã era o lugar da poesia. Mas no fim dos anos 80, a visão que Nina teve foi a de um grande bairro pobre da cidade da Bahia habitado por numerosa população negro-mestiça de baixa renda que encontrava moradia em áreas distantes do centro.
           A viajante gostou do longo trajeto a beira mar da Barra até Itapuã que desenhava toda uma ponta da península. Nina achou interessante as pessoas entrarem de biquini ou de calção e disputarem o espaço do ônibus corpo a corpo. Ela percebeu que tinha chegado a Itapuã quando viu a estátua da sereia, uma Iemanjá estilizada. Reparou na imensa feira de frutos do mar onde só se via negros; Nina sentiu-se na Costa da África. No fim da feira estava a Praça de Janaína, seu ponto de referência. Ao descer do ônibus sentiu cheiro de dendê e viu o tabuleiro de uma baiana de acarajé, resolveu provar um dos quitutes e procurou saber onde era o reduto do bloco afro Malê Debalê.
           "Negros sudaneses partidários da religião mulçumana/ os malês pretendiam abolir a escravidão/ no dia 25 de janeiro de 1835 começou a revolta dos malês/ atacando quartéis/ vitoriosamente avançaram pela Rua de Baixo, atual Carlos Gomes/ quando foram dissolvidos por forte contingente militar/ e mesmo assim não pararam de lutar/ oh negros sudaneses, oh negros malês".
           Nina chegou à sede do Malê Debalê em dia de ensaio da ala de dança. Os bailarinos estavam fazendo uma coreografia inspirada na dança de Oxum, a orixá que protege o bloco, na Lagoa do Abaeté, onde a deusa da água doce habita. Durante o ensaio, Nina conheceu o presidente do bloco, Josélio de Araújo  e conversou com ele. Ela se entusiasmou ao saber que o bloco tem como principal honra o fato de ter sido o precursor da organização de uma ala de dança em blocos afro. “Fomos nós que percebemos a força do movimento de dança que nasceu nas quadras de ensaios dos blocos. Foi o Malê Debalê o primeiro a trazer para a avenida sua ala de dança organizada”, que conta com 300 dançarinos(as).
           Nina ficou um longo tempo observando o ensaio e ouviu as instruções do dançarino que coordenava a ala: "É preciso sentir o ritmo e procurar a linguagem natural do corpo; atenção para a postura, a consciência corporal facilita a improvisação dos movimentos". As pessoas se referiam a este modo de dançar como suingue onde a requebro dos quadris e a agilidade para desenvolver o jogo de pernas e braços são imprescindíveis. A forma da coreografia fez Nina lembrar da dança dos orixás que ela tinha visto em um candomblé de São Paulo, mas o molejo do corpo daqueles dançarinos enfatizava a sensualidade dos gestos.
           Nina estava disposta a aprender a dança afro-baiana e se informou sobre a possibilidade de participar de alguma oficina oferecida pelo Malê Debalê. Soube que havia uma em curso, pensou em se inscrever, mas lembrou da distância que separava Itapuã da Barra e achou que seria melhor conhecer antes o Olodum que, como os outros blocos afro, também contava com uma ala de dança. Com a visita ao Pelourinho ela fecharia o mapa dos blocos afro mais importantes da Bahia. Decidiria depois em qual deles frequentaria a oficina de dança. 

Olodum do "Pelô"

           A meio caminho entre Itapuã e Periperi está o Pelourinho, o bairro de origem do Olodum. Nina desceu na Praça da Sé, naquele verão de 88, e se encaminhou para o Terreiro de Jesus por volta das 8 horas da noite. Próximo dali, no Largo do Pelourinho, centro histórico da cidade, o Olodum estava esquentando seus tambores para desfilar no Carnaval. Nina teve dificuldades para chegar ao local do ensaio do bloco por causa da intensa movimentação de transeuntes. Enquanto se aproximava ela pode ouvir o volume dos tambores e uma canção que dizia:
           “Eh faraó clama Olodum Pelourinho/ eh faraó, pirâmide a base do Egito/ que maravilha ê Egito, Egito ê Faraó ó ó ó/ Pelourinho uma pequena comunidade/ que o Olodum uniu em laços de confraternidade/ despertái-vos para a cultura egípcia no Brasil/ em vez de cabelos trançados teremos turbantes de Tutancâmon/ e as cabeças se enchem de liberdade/ e o povo negro pede igualdade/ e deixemos de lado as separações/ eh faraó".
           Nina já tinha ouvido Faraó, conhecia sua história através de seus amigos em São Paulo. Mas aquela multidão, cantando e dançando na rua, acompanhada de mais de duzentos tambores, lhe provocou um forte impacto estético. Além de tudo, o cenário barroco que lhes servia de moldura era deslumbrante. Nina não se poupou. Dançou até bem tarde, bebeu cravinho a noite toda e nem se lembrava direito como tinha voltado para o Albergue.
           No dia seguinte, Nina viu no jornal que uma companhia de teatro da Bahia Los Catedrásticos estava em cartaz com a peça Novíssimo recital da poesia baiana. Comprou o ingresso e foi conferir. Os atores declamavam as letras das músicas dos blocos afro, fora do contexto musical  e buscavam através da performance tornar ridículos e no sense seus conteúdos. A platéia formada por brancos-mestiços em sua maioria se divertia bastante e chegava às gargalhadas quando a letra de Faraó era recitada.
           Nina ficou sem entender porque certos setores da intelligentsia baiana pareciam navegar contra a maré da negritude que a produção musical dos blocos afro buscava valorizar. Ela já tinha ouvido dizer que as primeiras dinastias de faraós eram negras, e assim divertia-se com a possibilidade da elite branca baiana, que considerava absurda a teoria do Olodum, vir a ter de aceitar um dia a validade das idéias dos negros do Pelourinho.
           Desde que conheceu o Olodum, Nina não saiu mais do “Pelô”. Seu casario colonial, sacadas e janelas, suas igrejas exuberantes, suas ladeiras, suas praças secretas, suas ruas estreitas de pedras, suas cores fortes, seus cheiros úmidos, sua musicalidade permanente e variada construíam uma atmosfera peculiar. Ela gostava de ficar sentada na Cantina da Lua, um bar tradicional que tem bebidas interessantes, como infusões contra inveja e mau olhado, toca muito reggae e tem-se uma visão do Terreiro, onde sempre acontecem rodas de capoeira. Ela adorava o som do berimbau e o jogo de corpo dos capoeiristas. Subindo e descendo as ladeiras, se encantava com a beleza dos pretos que usavam boinas coloridas e gostavam de conversar perguntando de onde ela vinha.
-       E aí, minha preta, você não é daqui não, né?
-       Não, eu sou de Sampa.
-       Tá gostando da cidade?
-       Ah! Salvador é jóia, ainda mais que eu estou aqui p’ra aprender dança afro.
-       Cê quer dançar, já encontrou um professor...
-       Você ensina?
-       Eu toco no Olodum, a branquinha não quer ir no ensaio comigo não?
           Nina admirava a disponibilidade das pessoas, a fala mansa que ora chamava de “pretinha” ora de “branquinha” e o jeito de tocar no corpo do outro durante a conversa, alisando o braço ou emaranhando os cabelos. Ela aceitou o convite do negão e foi ao ensaio para vê-lo tocar seu surdo. O tema do Olodum para o Carnaval de 88 era a Ilha de Madagascar na costa leste africana. A canção tema Madagascar Olodum falava de uma rainha negra, Ranavalona, e tocava na questão da miscigenação entre bantus, indonésios e árabes. Era o ano do não ao Apartheid. O Olodum tinha se engajado na luta contra a segregação racial na África do Sul e a viajante se empolgou com aquela exaltação a África em um discurso anti-racista. Circulando no bairro, Nina ouviu falar que naquela noite haveria o concurso que escolhe a Rainha do bloco, a Deusa do Ébano, uma dançarina que é destaque no desfile do Carnaval.
           Nina passou a frequentar os dois ensaios do Olodum: aos domingos na praça principal do Pelourinho e às terças na quadra do bloco. Afinal de contas, o ensaio era um ambiente efervescente onde ritmos eram criados, letras construídas, coreografias elaboradas. Uma nova estética estava sendo inventada. Ir até a quadra do Olodum no teatro Miguel Santana ouvir samba-reggae e dançar durante horas a fio nos ensaios do bloco era um programa quente. Nina ficava feliz em ver que os ensaios reuniam pretos e brancos, brasileiros e estrangeiros, e que o Pelourinho se transformava no espaço negro mais festejado da cidade.
           Frequentando o bairro, Nina conheceu de perto as atividades do Olodum que também realiza uma série de trabalhos com a comunidade carente de seu bairro de origem. Oficinas de música e dança, cursos profissionalizantes, seminários e debates. Entusiasmada com o trabalho do grupo, a dançarina decidiu que faria a oficina de dança ali. Foi até a quadra do Olodum e assistiu a uma aula. Notou a habilidade dos dançarinos para fazer movimentos rasteiros com uso simultâneo de pernas, braços, quadril e cabeça. Os gestos sinuosos pareciam exigir força e no entanto fluíam livremente. Nina gostou muito do professor, um preto forte que lhe mostrou alguns movimentos corporais. Ela o imitou e então ele disse: "você tem ritmo, até o Carnaval você vai estar dançando como uma menina baiana". Nina sorriu e desejou ter nascido na Bahia.

um olhar transversal - os espaços musicais negros

           A ocupação física e simbólica de certos espaços urbanos, é uma marca das organizações afro de Salvador, constituídas nos populosos bairros negromestiços da cidade, locais de origem dos blocos afro-carnavalescos. Esta ocupação não se dá apenas durante o Carnaval, quando eles se constituem em espaços simbólicos para a população negro-mestiça. Os grupos afro não têm sua existência reduzida ao período da festa. Durante todo o ano, além dos ensaios eles realizam trabalhos junto às comunidades na qual tiveram suas origens. Estes são portanto espaços reais, permanentes e uma das mais importantes referências para os grupos, na medida em que fortalece a identificação e a coesão entre os atores da cena musical afro-baiana. Apesar de sua dispersão pela cidade, um olhar transversal permite perceber que estes espaços têm muitos elementos em comum. Vale a pena sair agora da posição daquele que percorre a cidade, para caracterizar em suas linhas mais gerais esses espaços musicais negros.
           Os blocos afro são a forma mais visível de expressão e mobilização afro-baiana. Estas organizações carnavalescas se identificam e são identificados  como unidades culturais em defesa do negro e de sua cultura, constituem-se em pólos onde questões étnicas são colocadas em pauta  e seus membros se conscientizam de sua negritude, através da construção de uma identidade que busca a valorização do negro em termos estéticos e culturais. A África é celebrada em seus múltiplos aspectos e os contatos das cúpulas dos blocos afro com a África são intensos. Viagens ao continente negro são frequentes. Muitas vezes têm mesmo o objetivo de buscar elementos que sirvam para delimitar o contraste identitário, outras de mostrar o trabalho do grupo em eventos relacionados com a luta dos povos negros.
           Movido por um "orgulho racial" recém-construído, o Ilê Aiyê, bloco afro pioneiro, organizado em 74, tem uma característica que lhe diferencia especialmente: o fato de ser um bloco de negros onde é rigorosamente vetada a entrada de associados brancos. Lançando mão do exclusivismo étnico baseado na cor-da-pele (antes nunca explicitado como regra) denuncia, às avessas, a intolerância dos brancos em relação aos pretos buscando assim, demolir o mito da democracia racial.
           A movimentação negra nos espaços dos blocos afro, está calcada no sentido genérico de “raízes africanas”. Essa referência a uma origem ancestral pretende ser uma rejeição aos padrões culturais europeizados da camada dominante da sociedade e procura afirmar uma memória coletiva localizada numa África, muitas vezes, mítica e genérica. O que é apropriado do vasto repertório africano são elementos como a música-dança, a indumentária, algumas das variadas formas de usar os cabelos, e a linguagem - sinais diacríticos que procuram estabelecer o contraste através da imagem de africanidade.
           A constituição de uma identidade afro-baiana onde as tradições africanas estavam sendo reinventadas e traduzidas em sinais diacríticos, modificavam fortemente o cotidiano das camadas negro-mestiças que frequentavam estes espaços afro-musicais. Segundo Clovis Moura, a valorização de modelos estéticos negros, inspirados na moda africana "projeta o anseio de um revival no hoje dos padrões de culturas milenares que seriam a base da estrutura sentimental e existencial do negro brasileiro. Referindo-se ao Ilê Ayiê, o antropólogo Valdeloir Rego afirmou: “o Ilê foi uma revolução no comportamento do negro baiano. Foi quando o negro deixou de alisar o cabelo, assumir sua beleza e começou a retomar sua tradição rítmica".
           Durante cinco anos (74 a 79) o Ilê Aiyê foi o único bloco afro de Salvador. Tempo suficiente para difundir sua experiência e motivar a formação de vários outros como Olodum (79), Malê Debalê (79), Ara ketu (80), Muzenza (81), entre muitos outros que se organizaram sob sua inspiração ao longo da década de 80. Portanto, não era somente no populoso bairro negro da Liberdade, que a afro-baianidade tomava corpo. Outros pólos também periféricos como Periperi, Itapuã, Pelourinho, davam  nuances ao movimento e, os novos grupos, embora não excluíssem a participação de brancos, não perdiam de vista a herança do bloco matriz.       
           A imagem de africanidade dos blocos afro se desenha também através da incorporação de elementos do candomblé. O candomblé aparece neste contexto como uma referência fundamental e muitos membros dessas organizações são adeptos da religião, inclusive personagens-chaves, como Vovô (Antônio Carlos dos Santos), diretor do Ilê Aiyê, que é filho biológico de Mãe Hilda e Augusto Cézar, diretor do Ara Ketu, que é pai de santo. São muitos os elementos pinçados pelos blocos afro do vasto repertório dos candomblés baianos.
           A percussão (tocada ao som de atabaques nos terreiros) é, como vimos, a base da musicalidade dos blocos. Além dos ritmos percussivos, o recurso vocal (elemento melódico) também encontra paralelos nos rituais sagrados. A técnica responsorial utilizada nos cultos do candomblé, que consiste em uma pergunta puxada pelo solista e respondida pelo coro e/ou pelos atabaques, foi apropriada pela produção musical dos blocos afro e inspirou a estrutura de várias canções, onde a voz do cantor/cantora aparece antes do som dos tambores (repiques, taróis, surdos). Note-se nos seguintes exemplos, Protesto Olodum, do Olodum e Canto sideral, do Ilê Aiyê respectivamente:

"Força e pudor liberdade (vocal)
ao povo do Pelô (repiques)
mãe que é mãe no parto sente dor(..)" (bateria)

"Hoje proeminente sua cultura (vocal)
lapidados ao canto sideral (repiques)
dessa raça viril e colossal (..)" (bateria)

           Tal como nas narrativas míticas, a história do povo africano é recontada nas letras das canções. Todos os blocos afro realizam pesquisas sobre a história da África, e a partir disso, apostilas são elaboradas e veiculadas entre os compositores da entidades. Vovô, presidente do Ilê Aiyê afirma: “Esta pesquisa é transformada em tema de música e reescrevemos a história sob nossa ótica e não da ótica dos colonizadores”. A forma como os blocos afro veiculam os conhecimentos adquiridos nas pesquisas sobre a África ("anualmente cada bloco escolhe um país africano como tema, contando nas letras das músicas alguns aspectos históricos, geográficos, culturais e políticos dessa porção do continente") se dá através da confecção de apostilas distribuídas entre os compositores dos blocos para que as letras das canções possam ser elaboradas.
           Outro importante elemento atrelado à construção das letras de músicas é o uso de expressões em iorubá. O recurso à língua africana, muito presente nas canções funciona como sinal diacrítico, pois remete imediatamente à cultura ancestral partilhada pelos membros dos grupos. Note-se nos breves trechos das canções, Babá okê, do Ilê Aiyê e A força dos deuses, do Olodum :

“Acorda pra ver o Ilê Aiyê/ o canto da raça africana/ fluente, baiana/ babá okê/ Oxalá e Xangô protegem você, Ilê Ayiê (..)”.

"Futuro eu não posso prever/ mistérios eu não vou desvendar/ bondades vou lhe prometer/ o passado a história vai contar/ niger kaô kabiesilê/ oh meu Deus Olodum(..)".

           A língua iorubá, embora exerça influência no modo de falar baiano, mantém-se sobretudo no campo da linguagem litúrgica do candomblé e foi, a partir daí, apropriada pelo blocos como símbolo de africanidade. Além do uso do idioma africano nos textos das canções, os próprios nomes dos blocos são traduções livres da língua iorubá. Malê Debalê significa " Negros Felizes Islamizados "; Ara Ketu significa “Povo do Reino de Ketu”; Olodum é diminutivo de “Olodumaré - Deus dos deuses”; Muzenza significa “Dança de Iaôs”; e Ilê Aiyê, significa "Casa de Negros".
           A presença do candomblé também pode ser observada nas danças elaboradas no interior dos blocos afro. Mantendo a tradição africana da inseparabilidade entre música e dança, os blocos recriam as danças dos Orixás. No interior dos candomblés, através da dança, os Orixás encarnados assumem características relativas ao mito de sua origem e contam a história da organização da sociedade. No contexto dos blocos afro, as danças rituais são estilizadas, trabalhadas de uma maneira muito mais livre. Nas coreografias afro-baianas pode-se ver alguns elementos da dança africana onde o sentido do movimento se volta para a terra, ou para chão (diferentemente do ballet,  onde as pontas dos pés e os braços erguidos sobre a cabeça, indicam o sentido do movimento para o alto). Na gestualidade dos dançarinos dos blocos, essa mesma postura se evidencia nos joelhos flexionados que tendem para baixo.
           Embora não esteja presa aos preceitos da religião, a dança afro exerce função narrativa nos enredos dos blocos, e aparece para descrever os temas desenvolvidos. Note-se no depoimento de Vera Lacerda: “Através da ala de dança nós fizemos o Ara Ketu na rua como se fosse o cotidiano de uma aldeia da Nigéria, que é a nossa referência cultural. E foi lindíssimo, nós ganhamos o Carnaval”. No seio do Ara Ketu se misturam a visão histórica de sua presidente, Vera Lacerda e a visão estética e religiosa do artista plástico e pai de santo Augusto Cézar, diretor cultural do bloco. Candomblé e pesquisa histórica se misturam para dar consistência ao projeto de emancipação social de uma população urbana-periférica, essencialmente negra.     
           A indumentária é mais um sinal diacrítico exibido com grande cuidado pelo blocos afro. A preparação das fantasias dos blocos está vinculada ao tema do desfile carnavalesco. No momento inicial, tecidos africanos foram importados, mais tarde, quando confeccionadas localmente, inspiravam-se em suas estamparias. Além disso, a palha da costa, conchas e búzios também são utilizados, valorizando a indumentária e conferindo-lhe mais africanidade. Os cabelos também são criativamente trabalhados em tranças soltas ou presas de variadas formas, há ainda o cabelo arrumado em gomos (tipo rastafari). A nova moda, difundida principalmente nos ensaios dos blocos, é um forte elemento de identificação entre membros dos grupos.
           A principal atividade nestes espaços negro-mestiços é a realização dos ensaios dos blocos. Todas as semanas estão reunidos nas quadras dos blocos afro, os seus diretores, os mestres das baterias, os percussionistas, os compositores e os associados com seus parentes e/ou amigos simpatizantes. Os ensaios se constituíram no espaço por excelência do processo de construção da identidade afro-baiana. Segundo Jeferson Bacelar, "a cultura torna-se ideologia e política, na construção da identidade do ser negro em Salvador. O seu poder de atração é enorme pela aproximação com a vivência cotidiana dos segmentos negros". A cultura musical tornou-se a forma privilegiada de expressão dessa identidade.
           O binômio música-lazer é, sem dúvida, o grande catalisador de imensos contingentes de jovens que se dirigem para os eventos afro a fim de cantar, dançar e reafirmar a força e a beleza da cultura afro-baiana. Esta mobilização acontece principalmente através dos ensaios dos blocos afro que funcionam como local do encontro, da troca, das elaborações estéticas que permitem essa construção de identidade. Além disso, o espaço demarcado evidencia e atualiza uma nova forma de interação social que permitiu a disseminação de uma auto-imagem e de uma linguagem percussiva com características particulares que os blocos afro  procuraram imprimir sobretudo através do ritmo samba-reggae, apoiado na percussão, e do discurso manifesto nas letras das canções.
         A rápida expansão dessa forma musical, inspirada em uma África percebida como ancestral é uma questão muito complexa que, para ser respondida de uma maneira satisfatória, exigiria um esforço historiográfico que ainda não foi realizado. Este trabalho pretende contribuir para esse esforço privilegiando o processo de criação de um novo ritmo. Trata-se de compreender suas características originais e o contexto mais amplo no qual o samba-reggae ganha sentido. No entanto, o sucesso dos bloco afro também merece uma compreensão sociológica já que eles supõe uma forma de sociabilidade que lhes dá suporte.
           Segundo Milton Moura, "para compreender o crescimento e a consolidação desse gênero musical é preciso considerar o tipo de atividade que sua produção envolve. Cada bloco faz ensaios semanais de cinco a sete horas de duração, onde são divulgadas centenas de músicas". O processo que desencadeou a popularidade das canções afro, não tem como instrumento a informação mediática, onde essa produção musical foi, até 87, praticamente ignorada. As rádios não as veiculavam, a imprensa não lhes dava espaço e a TV sequer mencionava os fluxos culturais destes espaços da velha cidade embebidos de musicalidade percussiva. Esse estilo musical negro estava, portanto,  sendo concebido naqueles espaços, muito antes de tornar-se visível nos meios de comunicação.
           Durante os ensaios dos blocos afro, ao longo do ano, as músicas são continuamente tocadas e rapidamente tornam-se conhecidas. "Quando se faz o concurso que aponta as músicas que serão levadas ao Carnaval, já se sabe quais delas agradaram mais ao pessoal presente nos ensaios. Algumas vão sendo divulgadas na praia, nas festas, nos bares, na rua". A produção de canções tornou-se uma forma de militância que buscava um padrão de negritude que fosse um parâmetro de referência para o grande contingente negro de Salvador. Aliado ao comportamento manifesto havia uma produção de discurso anti-racista, que se expressava sobretudo nas letras das canções, onde os bairros negros são sempre reafirmados e exaltados como espaços autônomos. Confira nos trechos das canções O mais belo dos belos/charme da Liberdade, do Ilê Aiyê; Lendas e Magias, do Malê Debalê; e Minha história,  do Ara Ketu, respectivamente:

"Quem é que sobe a ladeira do Curuzu?/ e é a coisa mais linda de se ver, é o Ilê Aiyê/ o mais belo dos belos, sou eu, sou eu/ bata no peito mais forte e diga: eu sou Ilê/ não me pegue não, me deixe a vontade/ deixe eu curtir o Ilê, o charme da Liberdade/ é tão hipnotizante o suingue desta banda/ a minha beleza negra/ aqui é você quem manda(..)"

"Lendas e magias, mistérios da evolução/ esse é o Malê Debalê, riqueza de uma nação/ entoação de canto afro/ Ibá Fokomim criou/ me levou ao Abaeté e ali me batizou/ não entre em transe seja transado no Malê Debalê(..)/ eu sou feliz porque sou negão/ eu sou feliz porque sou Malê/ olha a lenda ê ê/ olha a lenda Malê"

"Vou me embalar ô s'embalae ê/ Periperi faz parte da minha história/ e o subúrbio presente na minha memória/ chega o domingo subo de trem, desço de trem/ vou pro Ara Ketu curtir o suingue/ com você meu bem na quadra do Ketu/ exaltando e encantando/ mostrando o suingue do povo de lá/ quem vem lá com seu ofá/ trazendo justiça e sorte/ nada de morte(..)"
          
           O ensaio, onde essas canções são veiculadas, se constitui no momento do encontro, onde os membros do grupo partilham suas ideologias, valores, gostos e interesses, reiterando a opção por um grupo. Dessa ocupação depende a vitalidade e a conservação do espaço musical. Mas não é apenas a movimentação dos ensaios que garante a constituição dos espaços negros. Os blocos afro desenvolvem uma série de outras atividades de grande importância para as comunidades locais. Há todo um trabalho educacional voltado para crianças e adultos que implica na formação de oficinas de música e de dança, onde são formadas as bandas de percussionistas mirins e as coreografias afro-baianas são elaboradas. Outras atividades como cursos de capoeira, entendida como legítima expressão de cultura negra e cursos de teatro que buscam a formação de atores negros também são oferecidos pelas organizações mais estruturadas.
           Além destes há uma variedade de cursos profissionalizantes, geralmente relacionados aos interesses dos blocos, como por exemplo, Corte e Costura, onde os alunos são aproveitados para a confecção das fantasias dos blocos; cursos de estamparia, onde os tecidos de inspiração africana são confeccionados; ou ainda cursos para cabeleireiras, onde se formam as trançadeiras responsáveis pelos penteados afro. A maior parte dessas atividades vem sendo desenvolvida por todos os blocos de grande porte da cidade, que já têm seus espaços constituídos. Este tipo de atividade permitiu que os grupos afro alcançassem uma representação significativa nas comunidades locais. Esta foi mesmo a intenção da presidente do Ara Ketu, Vera Lacerda: “Não queria que o Ara Ketu fosse apenas uma entidade carnavalesca, mas sim que exercesse um trabalho social mais amplo, que conseguisse melhorar o nível de informação e vida da periferia marginalizada". O trabalho social realizado pelos blocos afro levou a Prefeitura de Salvador a considerá-los entidades de utilidade pública.
           Finalmente, é preciso enfatizar que para além das semelhanças entre os blocos afro existem nuances que os diferenciam e os contatos com a África serviram para pluralizar o imaginário dos grupos afro alimentado pelo continente negro. Existem diferenças entre os blocos afro, no plano do imaginário que um esforço comparativo permite apontar.
           O Ilê Aiyê se volta para uma “África  tradicional” em busca de seus sinais de identificação. Pinça seus elementos estéticos em pequenas comunidades africanas que representam uma "África tribal", anteriores às lutas independentistas dos anos 70, e dela retira os elementos que constroem a sua ancestralidade simbólica.
           Já o Ara Ketu se espelha numa “África moderna”. É para os grandes centros urbanos do continente negro que os diretores do Ara Ketu viajam, a fim de pesquisar a modernidade musical africana, que não dispensa uma tecnologia altamente sofisticada, para empreender seus experimentos sonoros, claramente inspirados na moderna música africana, como veremos no primeiro capítulo.
           O Malê Debalê  por ser um bloco de pequeno porte, sem grande capacidade de negociação, estabelece raros contatos diretos com a África. É uma entidade pouco festejada pela mídia e a sua popularidade está circunscrita a seu bairro de origem. Sua referência cultural mais forte está na história dos negros islamizados da Bahia, que protagonizaram a revolta dos Malês em 1835, uma das mais vigorosas insurreições de escravos que envolveu africanos nagôs e haussás convertidos ao Islã. O bloco tematiza a cada Carnaval, uma “África mística” que mistura islamismo e candomblé.
            O  bloco afro Olodum transformou-se em um Grupo Cultural e investe alto na educação de crianças carentes do bairro que passam a ser alfabetizadas pelo bloco. Quanto mais se impregnava de um discurso anti-racista acadêmico mais se constituía enquanto uma intelectualidade orgânica, de grande peso no movimento negro baiano, dedicada a uma pesquisa histórico-antropológica, que visava o resgate da ancestralidade negra culta, apontando desta maneira,  para uma “África científica”.
           Diferentemente do Ilê Aiyê, do Ara Ketu, do Malê Debalê e do Olodum, o Muzenza é o único bloco afro sem território fixo, o Muzenza já ensaiou na Ribeira, na Massaranduba, no Largo do Tanque, e hoje sua sede volta a ser na Liberdade (local onde a entidade se organizou inicialmente), sendo que seu escritório funciona no Pelourinho. Este caráter itinerante aponta para uma “África nômade", que tem como pilar os signos panafricanistas da Jamaica. O símbolo do bloco é o Leão de Judá, título que cabe a Hailé Selassié ou Ras Tafari, o imperador da Etiópia, endeusado na Jamaica pelos seguidores do rastafarianismo. É também chamado Muzenza do Reggae, tal o seu envolvimento com o ritmo, tendo Bob Marley como ícone maior. Estabelece assim um contato indireto com a África através de uma ligação simbólica com um dos países da diáspora africana.
           Estas sutis diferenciações de perfil, entretanto, não desagregam os blocos afro enquanto movimento articulador de uma estética afro-baiana e suas atividades apontam para uma importante mudança: a nova produção de cultura negra na Bahia, a partir do sucesso crescente da estética percussiva, sai dos espaços tradicionais como o candomblé, a capoeira e o Carnaval passando a atuar no cenário das mídias, estabelecendo uma estreita ponte com mercado da música. A invenção do samba-reggae é o pivô deste processo.
            

Um comentário:

  1. Bom dia, Goli Guerreiro. Sou estudante de Letras, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB e estou prestes a me formar, somente falta a bendita monografia e pretendo falar do (que descobri hoje que se chama a terceira diáspora) pagode baiano, enquanto (sub) gênero musical com foco nas músicas que tocam nas questões étnico-raciais e territórios subalternos (favelas, morros etc.). Ano passado comprei um de seus livros, "A Trama dos Tambores", para embasar a bendita este ano e pelo que li estou gostando muuuito! Aproveitando a descoberta do seu blogue, percebi que há fixado no mesmo dois links para livros que tratam desta nova diáspora, porém os links estão OFF e não se pode baixar os arquivos. Se ler este comentário e puder me mandar os links ou arquivos dos supracitados livros, ficarei muito grato. Parabéns pelos grandes trabalhos sobre nossa cultura!

    ResponderExcluir

Marcadores

fontes

  • múltiplas

Arquivo do blog