cena musical afro-baiana -impressionismo e transversalidade
por goli guerreiro
um olhar impressionista – os blocos afro de salvador
São Paulo, verão de 1988. Nina resolveu passar a noite de sexta-feira
em casa. Ligou a televisão e pegou um livro de Antônio Risério Carnaval Ijexá que um de seus amigos baianos lhe emprestou. O livro anunciava a emergência de
uma consciência afro entre os jovens negro-mestiços de Salvador no início dos
anos 80. Mesmo interessada na leitura, uma matéria na TV lhe chamou a atenção.
O tema era a novidade musical que vinha da Bahia: a música percussiva produzida
pelos blocos afro-carnavalescos de Salvador.
Ela aumentou o volume e acompanhou a matéria com grande interesse.
A mídia anunciava que em Salvador os
blocos afro haviam inventado o samba-reggae, um novo ritmo que mesclava samba
duro com reggae jamaicano, transformando a música em bandeira política com
força suficiente para barganhar cidadania para o negro baiano, chamando atenção
para a vitalidade da cultura negra na Bahia. O interesse de Nina pela velha
cidade aumentou depois de ter visto aquelas imagens. O que mais a impressionou
foi a performance corporal dos percussionistas, que elaboravam coreografias
vigorosas enquanto tocavam seus tambores.
Nina
é dançarina, estuda dança moderna desde criança e seu antigo interesse
por Salvador estava relacionado com sua vocação artística. Ela é uma garota
branca paulistana, classe média, que quando concluiu o segundo grau pensou em
mudar de cidade para se profissionalizar em alguma das poucas universidades do
país que oferecem cursos de dança. A Escola de Dança da Universidade Federal da
Bahia era uma opção. Na verdade, o que Nina desejava mesmo era conhecer novas
possibilidades dentro do mundo da dança.
Na manhã seguinte Nina desceu para
comprar jornais. Ao pegar a Folha de São Paulo
ela quase não acreditou quando leu o título de uma matéria: “A Bahia
virou Jamaica”,
publicada na Ilustrada. Era muita coincidência. Depois de ler toda a página que
traçava um perfil do movimento musical afro-baiano, Nina teve certeza que
alguma coisa de muito forte e criativa estava acontecendo na paisagem sonora de
Salvador nos últimos anos da década de 80, pois a imprensa estava dando uma
atenção especial à Bahia.
As notícias veiculadas pela mídia
animavam as conversas de Nina com seus amigos baianos sobre Salvador. Eles lhe
asseguravam que uma efervescência musical se espalhava pelos três cantos da
península triangular que avança para o mar desenhando, de um lado, a Baía de
Todos os Santos e, de outro, o Oceano Atlântico. Os tambores que soavam de
Itapagipe a Itapuã começavam a enviar seus sinais para o resto do Brasil.
Nina já estava acostumava a ouvir
estórias sobre o cotidiano de Salvador e escutar discos de novos talentos
locais. Algumas canções baianas passaram a fazer parte de seu repertório
preferencial, como a música de Gerômino Eu sou negão, veiculada em Salvador no verão de 87, transformada
num verdadeiro manifesto afro, atraíra particularmente a dançarina por causa da
diversidade rítmica. O autor da canção era freqüentador dos populosos bairros
negro-mestiços da cidade, vistos como "guetos", como Pelourinho e
Liberdade. Nestes espaços, Gerônimo se encharcou de música caribenha e não
hesitou em misturá-la com o ritmo ijexá do candomblé, do qual é adepto. Nina
adorava a fala do cantor que reproduzia uma cena do Carnaval de Salvador:
“(..) e aí chegaram os negros com toda a sua
beleza, sua cultura, sua tradição, com
toda sua religião, tentada, motivada a
ser mutilada pelos heróis brancos da história e estamos aqui, eles sobreviveram
no bum bum bum, no seu tambor e o negão vai cantando assim: pega a rua Chile
desce a ladeira tá na Praça Castro Alves, fazendo seu deboche, transando o
corpo, e o negão assume o microfone e na beirada da multidão em cima do
caminhão ele fala: ‘Alô rapaziada do bloco, esse é o nosso bloco afro, vamos
curtir agora o nosso som, a nossa levada que é a nossa cultura e segura comigo: Eu sou negão, eu sou negão/
meu coração é a liberdade/ sou do Curuzu, Ilê, igualdade nagô / essa é a minha
verdade’. E de repente aparece ao longe um carro todo iluminado é um trio
elétrico. ‘Que é isso meu irmão? Venha devagar, calma, segura essa aí’ e o cara
do trio lá de cima olha: ‘legal, massa, pessoal do bloco afro, é uma beleza tá
aqui com vocês, vamos levar o som’ e o negão lá de baixo falando: ‘qual é meu
irmão aqui é boca de zero nove,
é o suingue d’a gente, vá pegue seu caminhão e siga seu caminho que a gente vai
seguir o nosso, e na levada: Eu sou
negão, meu coração é a liberdade/ eu sou
negão’ (...)”.
Seus amigos
lhe disseram que a música havia sido composta de improviso durante o Carnaval
de 86, quando Gerônimo assistiu a invasão do espaço do bloco afro pelos seis
mil watts de potência sonora do trio elétrico. Situação bastante comum no
período da festa carnavalesca, quando se arma uma disputa de espaço entre as
manifestações musicais negras (acústico-percussivas) e brancas
(elétrico-harmônicas). O compositor começou a narrar o que via e, lutando por
um melhor espaço-posição para os negros da Bahia, compôs a canção. Segundo
Gerônimo, “o que estava em jogo naquele momento era a luta pelo respeito às
manifestações negras. E a gente não queria isso só no Carnaval não”.
O
reggae de Gerômino foi um hit no verão de 87 e
transformou o sentido do termo negão.
Todo adepto do movimento musical afro-baiano passava a se chamar assim. Negão qualificava um negro consciente de
sua negritude, que tem um pé na África e outro na Jamaica, exibe roupas
coloridas e reverencia Bob Marley, num linguajar cheio de gírias inspiradas na
língua iorubá. Enquanto pretos e brancos de Salvador cantavam em uníssono “Eu
sou negão”, Caetano Veloso se perguntava “Eu sou neguinha?” no seu disco Caetano (1987), onde na capa do álbum,
contempla um negro e um mar buscando tornar indistinguíveis as paisagens da
África e da Bahia.
Nina se encantava com estes relatos,
mas de tudo o que ela ouviu o que mais a impressionou foi o samba-reggae Faraó, de Luciano Santos, compositor do
Olodum. A letra da canção estabelecia uma
relação entre os Faraós do Egito e os negros baianos. Um de seus amigos lhe
contou que "nos ensaios a letra foi aprendida desde outubro, com a ajuda
de um folheto impresso. O refrão era cantado por todos, começava a se espalhar
pela cidade, tinha melodia e palavras diferenciadas que lhe davam um toque
especial.
E outro lhe disse que “logo a discussão extrapolava o Olodum e atingia a
comunidade. O Egito iria despertar grande interesse, principalmente com tão
impressionante novidade: as pirâmides, toda a grandeza da civilização antiga,
na verdade era uma obra da raça negra”.
“Deuses, divindade infinita do universo/ predominante esquema
mitológico/ a ênfase do espírito original ‘Chu’ / formará no éden o ovo
cósmico/ a emersão nem Osiris sabe como aconteceu/ a ordem ou submissão do olho
seu/ transformou-se na verdadeira humanidade/ epopéia do código de Gueb e Nut
gerou as estrelas/ Osiris proclamou matrimônio com Isis/ e o mal Seth, irado o
assassinou em Per-AÁ/ Horus levando avante a vingança do pai/ derrotando o
império do mal Seth/ ao grito da vitória que nos satisfaz/ Tutancâmon, iê iê
Gizé/ Akahenaton, iê iê Gizé/ Eh Faraó, clama Olodum-Pelourinho(..)”.
Com a força
do "correio nagô", que atualiza de boca em boca as novidades locais,
o samba-reggae Faraó, que se tornou
conhecido primeiramente pelas pessoas que freqüentavam os ensaios do Olodum, se
espalhou pelas ruas da cidade, passando a ser tocado e cantado durante as
festas de largo que começam em dezembro na Conceição da Praia, antigo cais da
cidade da Bahia e se estendem até o Carnaval, a maior das festas de rua. Pensando
em música e mar, Nina decidiu passar o resto do verão em Salvador.
Nina desembarcou no aeroporto de
Salvador numa tarde de fevereiro de 1988 cheia de expectativa. Na sua
imaginação a cidade era um grande salão de dança de rua e ela queria conhecer de
perto os dançarinos afro que se moviam ao som de ritmos vigorosos exibindo sua
expressão corporal sedutora. Por recomendação dos amigos, hospedou-se em um albergue no Porto da Barra,
uma praia mítica onde as pessoas costumavam aplaudir o pôr-do-sol e se banhavam
cercadas por estrelas do quilate de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Nina ficou encantada
com a paisagem do Porto da Barra, uma pequena baía, delimitada por antigos
fortes, de onde se avista a Ilha de Itaparica. E ela achou que não poderia
haver uma praia urbana mais aconchegante. Nina
queria também visitar logo a primeira escola de dança do Brasil e não
tardou a localizar o endereço da Escola de Dança da UFBA. Pegou um ônibus no
Porto da Barra para ir até o Terreiro de Jesus, onde ficava a Escola. Quase
perdeu a parada, pois ficou entretida com a batucada de uns moleques, no fundo
do ônibus, feita a partir de instrumentos improvisados: a madeira do recosto dos bancos, cadernos,
canetas que serviam de baquetas, além de um pequeno surdo que um deles portava.
Quando Nina chegou à escola sofreu uma grande decepção: descobriu que a dança
afro não fazia parte da grade curricular. Demorou um pouco a acreditar na
informação. Como era possível a Escola de Dança da Bahia, não oferecer cursos
nesta especialidade?
Conversando com alguns
estudantes no pátio da Escola, Nina ficou sabendo que as escolas de dança afro
proliferaram em Salvador, atraindo uma grande parcela de jovens, que antes
estudava ballet clássico ou dança
moderna. Uma das alunas sugeriu que ela fosse aos shows das bandas de trio que
acontecem nos clubes da cidade. Mas Nina já estava decidida a ver a dança da
Bahia nos espaços onde ela tinha ganhado forma: os bairros negros da cidade,
onde os blocos afro ensaiavam. Uma vez tomada a decisão, não perdeu mais tempo:
pôs-se a visitar os bairros onde os blocos afro tinham nascido. Ela queria
ouvir o samba-reggae, ver os percussionistas executando seus instrumentos nas
quadras de ensaios, descobrir os segredos da gestualidade afro-baiana, aprender
as coreografias, conversar com os integrantes dos grupos, para conhecer de
perto a riqueza da cultura negra na Bahia . Para isso era preciso percorrer o
mapa musical da cidade. A viajante foi metódica: resolveu começar pelo primeiro
bloco afro de Salvador: o Ilê Ayiê.
Ilê Aiyê da Liberdade
Com o mapa da cidade
nas mãos, se informou com a dona do Albergue como chegar a Liberdade, o bairro
de origem do Ilê Aiyê. Da janela do ônibus, reparou o traçado diferenciado na
periferia urbana, que desenhava o maior bairro negro-mestiço da América Latina.
Lendo o livro de Antônio Risério ela descobriu que os pretos da Liberdade
haviam sido os primeiros a manifestar sinais da consciência de negritude
procurando demonstrá-la através das roupas coloridas, dos cabelos trançados,
das gírias africanizadas e sobretudo pela sua musicalidade percussiva.
O bloco afro Ilê Aiyê e
o bairro da Liberdade ( mais especificamente a área conhecida como Curuzu, onde
se situa sua sede) são indissociáveis. Nesse bairro nasceu e se cristalizou a
idéia de mostrar o universo negro em sua grandeza e modificar a auto-imagem dos
pretos de Salvador. Mobilizados em torno do Carnaval, um grupo de moradores da
Liberdade elaborou um tipo de organização carnavalesca cuja música mesclava o
samba duro com a batida matriz Ijexá, originária dos candomblés. Nina queria
ver e ouvir tudo isso.
"Ilê
Aiyê a tua força vem do teu cantar/ Zumbi mandou dizer que o Ilê é o torrão da
vida/ iremos com toda raça unida/ (..) Ilê Ayiê vai se acender feito clarão/ na
terra mãe do nosso coração/ Ilê Aiyê é que vai ser o nosso chão/ p'ra se fundar
de novo uma nação/ Salvador magia, Curuzu, Bahia/ que felicidade é a festa do
Ilê/ o Ilê é liberdade" .
Nina perguntou ao
motorista onde ficava a ladeira do Curuzu. Desceu do ônibus e resolveu entrar
num pequeno bar, puxou assunto com alguns negros jovens que estavam por ali
tomando cerveja. Explicou-lhes que queria conhecer o Ilê Aiyê e logo ficou
sabendo detalhes sobre o bloco afro mais respeitado da Bahia. Um dos rapazes
lhe disse que o nome inicial escolhido para o bloco foi “Poder Negro”, mas isso
gerou problemas com a polícia que via ali uma ameaça de levante dos negros.
“Como estávamos impedidos de adotar aquele nome, fomos consultar os búzios para
encontrar outro. Foi indicado Ilê Aiyê que, em iorubá, significa “Casa de
Negros”, “Abrigo de Negros” ou ainda “Terreiro de Negros”.
Nina soube também que
tanto o núcleo fundador do Ilê Aiyê quanto uma grande parcela dos integrantes
do bloco são ligados aos terreiros de candomblé. O próprio nome do bloco foi
indicado pelo jogo de búzios. Também a saída do bloco do Curuzu para o centro
da cidade no sábado de Carnaval recria um ritual inspirado do universo
religioso, o padê. Uma das fundadoras do bloco, Mãe Hilda, que é mãe de santo, solta pombos brancos na sede do
bloco, ao pé da ladeira, pedindo proteção para seus filhos. O ritual é a senha
para a tradicional subida da ladeira do Curuzu, que já rendeu letras de canções
e reúne todos os anos milhares de afro-baianos e curiosos, de todas as cores,
nos sábados de Carnaval.
Nina se informou sobre
o endereço da sede do Ilê Aiyê que estava mais abaixo da Ladeira, mas quando
saiu do bar percebeu um som de tambores que vinha de cima e se dirigiu para lá.
Era um evento reunindo o Ilê Aiyê e outro bloco afro, o Muzenza, também fundado
na Liberdade. Foi a primeira vez que Nina viu os tambores na rua. Ficou
extasiada com a força rítmica da música e com a alegria dos percussionistas que
executavam seus instrumentos com enormes sorrisos estampados nos rostos. Todas
as pessoas usavam torços amarrados na cabeça ou exibiam os cabelos trançados de
variadas maneiras. Além disso havia a beleza das coreografias, o desenho da
dança no espaço aberto. Os(as) dançarinos(as) pareciam flutuar em suas roupas
multicoloridas.
O Ilê Aiyê usa na
estamparia dos tecidos e nos instrumentos, o vermelho do sangue derramado na
escravidão, o amarelo do apogeu e do poder, o preto da cor e o branco da paz. O
Muzenza usa as cores da bandeira da Jamaica, verde, amarelo e preto, pois o
bloco estava completamente sintonizado com as ondas do reggae e seguia a
filosofia dos rastafaris. Muitos trajavam camisetas com fotos de Bob Marley,
usavam os cabelos em forma de gomos, e entoavam canções que reverenciavam o
ídolo. Nina não sabia se estava diante da África ou da Jamaica.
"Eh Mama África Mama África Muzenza/ rum pi lé rompeu a cor/
trazendo canção, amor, ijexá/ quem ouviu não vacilou se encantou e africanizado
está/ a galera do mal, Muzenza, guerrilheiros/ Mama África/ Bob Marley semeou e
o reggae se espalhou/ difundiu em Salvador/ jamaicanizados a galera do mal/
Muzenza guerrilheiros/ Mama África".
Quando a música acabou
Nina desceu a ladeira do Curuzu, em direção a sede do Ilê Aiyê, entretida com o
movimento das pessoas nas calçadas, nas portas de suas pequenas casas onde
mulheres conversavam, homens jogavam cartas e meninos batucavam em bacias de
metal ou latas de manteiga que lhes serviam de tambores. Havia uma atmosfera
peculiar. Em alguns momentos ela se sentia diferente por ser branca, em outros
se sentia acolhida, como quando parou para comprar balas numa quitanda, montada
na janela de uma casa, e retribuiu ao sorriso hospitaleiro da preta velha que
os vendia ouvindo um rádio de pilha.
Quando chegou à sede do
bloco, teve a chance de visitar as oficinas de profissionalização que a
entidade mantêm. Descobriu que a composição das roupas do Ilê Aiyê é
cuidadosamente preparada a partir de pesquisas sobre povos e regiões da África
que o bloco tematiza a cada ano. Nas oficinas, viu algumas mulheres preparando
os torços estampados. Viu também a agilidade das mãos das trançadeiras. Se deu
conta então, da grande preocupação estética do grupo. Imediatamente lembrou de
uma música de Caetano Veloso:
"Quando
essa preta começa a tratar do cabelo/ é de se olhar/ toda a trama da trança/ a
transa do cabelo/ conchas do mar/ ela manda buscar pra botar no cabelo/ toda
minúcia toda delícia/ não me amarra dinheiro não, mas elegância/ dinheiro não,
mas a cultura(..)".
Aqueles versos estavam
inscritos ali. Nina desejou ficar mais tempo, mas já era noite e ela se
despediu das pessoas, depois de ser convidada para ver o ensaio do Ilê Ayiê nas
noites de sábado no Forte de Santo Antônio, bairro vizinho ao da Liberdade. Nina
voltou ao albergue com a sensação de ter visitado o Harlem soteropolitano.
Ara Ketu de Periperi
No dia seguinte decidiu
que iria para bem longe da Liberdade, para o bairro de Periperi, reduto do
bloco afro Ara ketu. Ao acordar vestiu uma roupa leve e pegou um ônibus que
deveria levá-la até a Leste Brasileira, a estação onde pegaria o trem para o
subúrbio ferroviário. No caminho, ela viu o Mercado Modelo. Resolveu descer
para ver o artesanato local e acabou vendo também uma roda de capoeira jogada
no pátio do Mercado em frente ao antigo porto de Salvador.
Depois de apreciar o
movimento dos barcos e de comprar frutas nas barracas que cercam a área, seguiu
para o bairro da Calçada, onde fica a Estação. No trem, Nina ficou surpresa ao
ver que os trilhos passavam junto ao mar e acabou desejando que o trajeto até
fosse ainda mais longo. Ao descer na estação de Periperi informou-se sobre o
caminho para o Esporte Clube Periperi onde funciona a sede do bloco. A
proximidade do Carnaval explicava a grande movimentação no Clube pois havia
ainda muita coisa a ser preparada para que o bloco realizasse um bom desfile.
"Ara Ketu é meu, é seu, é de nós/ é de Deus é de lá sua voz/ Ara
Ketu vai dar pra esse povo sofredor/ o mesmo alento que dá força aos fiéis / e
ele vai lembrar de Zumbi libertador/ livrando o povo dos grilhões e das galés/
vai retumbar todo o chão de Salvador/ com seus tambores, atabaques e afoxés/
batam palmas que o Ara Ketu vai passar/ com suas alas de sinhôs e de sinhás/ e
ele chega no balanço do ijexá/ trazendo a força e a proteção dos orixás".
Observando os detalhes,
Nina percebeu que os elementos do Ara Ketu em muito se assemelham aos do Ilê
Ayiê e do Muzenza. A presença da africanidade era inquestionável. Os seus
enredos contam a história do povo negro e homenageiam os deuses africanos.
Oxossi, o orixá da caça é considerado protetor do bloco. Vera Lacerda,
historiadora e presidente da entidade explicou porque: “O primeiro ano do Ara
Ketu talvez tenha sido o mais importante. Nós havíamos escolhido como tema uma
homenagem ao rei caçador. Isso porque nos búzios tinha dado que o orixá
protetor do Ara Ketu era Oxossi. Inclusive o símbolo do bloco é o ofá que é símbolo de Oxossi”.
Nina ficou curiosa para
ver o ensaio do Ara Ketu pois soube que a efervescência era grande, sua
capacidade de aglutinação de jovens negros era imensa, mas Periperi era muito
longe da Barra e ela não teria como voltar à noite. Além disso, queria
aproveitar o resto do dia para visitar o Parque São Bartolomeu, pois o Ara Ketu
chamava a atenção para a necessidade de conservação da área, considerada espaço
sagrado, pela presença de plantas de fundamental importância para os rituais
dos candomblés. Consultando um folheto informativo que havia na sede, Nina
soube que São Bartolomeu é apenas uma das áreas do Parque Metropolitano de
Pirajá, "um dos remanescentes da Mata Atlântica que restam no Brasil, tem
mais de 1.500 hectares de floresta. Antiga aldeia indígena, foi engenho e
quilombo de negros fugidos da escravidão". Ela
não queria perder a oportunidade de conhecer um parque de tamanha grandeza
física e simbólica.
Malê Debalê de Itapuã
No terceiro dia, Nina
resolveu visitar o bloco afro Malê Debalê. Seguindo pela orla marítima, em
direção ao litoral norte, está a praia de Itapuã e a lagoa do Abaeté, antiga
aldeia de pescadores e mais tarde transformada em balneário para a classe média
e alta, que já abrigou moradores ilustres como Dorival Caymmi e Vinícius de
Moraes. Compositores famosos, imortalizaram o lugar com suas canções praianas que
festejavam a malemolência do povo, o
sabor e o cheiro exalados pelos tabuleiros das baianas de acarajé, sem esquecer
de descrever suas paisagens paradisíacas. Itapuã era o lugar da poesia. Mas no
fim dos anos 80, a visão que Nina teve foi a de um grande bairro pobre da
cidade da Bahia habitado por numerosa população negro-mestiça de baixa renda
que encontrava moradia em áreas distantes do centro.
A viajante gostou do
longo trajeto a beira mar da Barra até Itapuã que desenhava toda uma ponta da
península. Nina achou interessante as pessoas entrarem de biquini ou de calção
e disputarem o espaço do ônibus corpo a corpo. Ela percebeu que tinha chegado a
Itapuã quando viu a estátua da sereia, uma Iemanjá estilizada. Reparou na
imensa feira de frutos do mar onde só se via negros; Nina sentiu-se na Costa da
África. No fim da feira estava a Praça de Janaína, seu ponto de referência. Ao
descer do ônibus sentiu cheiro de dendê e viu o tabuleiro de uma baiana de
acarajé, resolveu provar um dos quitutes e procurou saber onde era o reduto do
bloco afro Malê Debalê.
"Negros sudaneses partidários da religião mulçumana/ os malês
pretendiam abolir a escravidão/ no dia 25 de janeiro de 1835 começou a revolta
dos malês/ atacando quartéis/ vitoriosamente avançaram pela Rua de Baixo, atual
Carlos Gomes/ quando foram dissolvidos por forte contingente militar/ e mesmo
assim não pararam de lutar/ oh negros sudaneses, oh negros malês".
Nina chegou à sede do
Malê Debalê em dia de ensaio da ala de dança. Os bailarinos estavam fazendo uma
coreografia inspirada na dança de Oxum, a orixá que protege o bloco, na Lagoa
do Abaeté, onde a deusa da água doce habita. Durante o ensaio, Nina conheceu o
presidente do bloco, Josélio de Araújo e
conversou com ele. Ela se entusiasmou ao saber que o bloco tem como principal
honra o fato de ter sido o precursor da organização de uma ala de dança em
blocos afro. “Fomos nós que percebemos a força do movimento de dança que nasceu
nas quadras de ensaios dos blocos. Foi o Malê Debalê o primeiro a trazer para a
avenida sua ala de dança organizada”, que conta com 300 dançarinos(as).
Nina ficou um longo
tempo observando o ensaio e ouviu as instruções do dançarino que coordenava a
ala: "É preciso sentir o ritmo e procurar a linguagem natural do corpo;
atenção para a postura, a consciência corporal facilita a improvisação dos
movimentos". As pessoas se referiam a este modo de dançar como suingue onde a requebro dos quadris e a
agilidade para desenvolver o jogo de pernas e braços são imprescindíveis. A
forma da coreografia fez Nina lembrar da dança dos orixás que ela tinha visto
em um candomblé de São Paulo, mas o molejo do corpo daqueles dançarinos
enfatizava a sensualidade dos gestos.
Nina estava disposta a aprender a dança afro-baiana e se informou sobre
a possibilidade de participar de alguma oficina oferecida pelo Malê Debalê.
Soube que havia uma em curso, pensou em se inscrever, mas lembrou da distância
que separava Itapuã da Barra e achou que seria melhor conhecer antes o Olodum
que, como os outros blocos afro, também contava com uma ala de dança. Com a
visita ao Pelourinho ela fecharia o mapa dos blocos afro mais importantes da
Bahia. Decidiria depois em qual deles frequentaria a oficina de dança.
Olodum do "Pelô"
A meio caminho entre
Itapuã e Periperi está o Pelourinho, o bairro de origem do Olodum. Nina desceu
na Praça da Sé, naquele verão de 88, e se encaminhou para o Terreiro de Jesus
por volta das 8 horas da noite. Próximo dali, no Largo do Pelourinho, centro
histórico da cidade, o Olodum estava esquentando seus tambores para desfilar no
Carnaval. Nina teve dificuldades para chegar ao local do ensaio do bloco por
causa da intensa movimentação de transeuntes. Enquanto se aproximava ela pode
ouvir o volume dos tambores e uma canção que dizia:
“Eh
faraó clama Olodum Pelourinho/ eh faraó, pirâmide a base do Egito/ que
maravilha ê Egito, Egito ê Faraó ó ó ó/ Pelourinho uma pequena comunidade/ que
o Olodum uniu em laços de confraternidade/ despertái-vos para a cultura egípcia
no Brasil/ em vez de cabelos trançados teremos turbantes de Tutancâmon/ e as
cabeças se enchem de liberdade/ e o povo negro pede igualdade/ e deixemos de
lado as separações/ eh faraó".
Nina já tinha ouvido Faraó, conhecia sua história através de
seus amigos em São Paulo. Mas aquela multidão, cantando e dançando na rua,
acompanhada de mais de duzentos tambores, lhe provocou um forte impacto
estético. Além de tudo, o cenário barroco que lhes servia de moldura era
deslumbrante. Nina não se poupou. Dançou até bem tarde, bebeu cravinho a noite
toda e nem se lembrava direito como tinha voltado para o Albergue.
No dia seguinte, Nina
viu no jornal que uma companhia de teatro da Bahia Los Catedrásticos estava em cartaz com a peça Novíssimo recital da poesia baiana. Comprou o ingresso e foi conferir.
Os atores declamavam as letras das músicas dos blocos afro, fora do contexto
musical e buscavam através da
performance tornar ridículos e no sense
seus conteúdos. A platéia formada por brancos-mestiços em sua maioria se
divertia bastante e chegava às gargalhadas quando a letra de Faraó era
recitada.
Nina ficou sem entender
porque certos setores da intelligentsia
baiana pareciam navegar contra a maré da negritude que a produção musical dos
blocos afro buscava valorizar. Ela já tinha ouvido dizer que as primeiras
dinastias de faraós eram negras, e assim divertia-se com a possibilidade da
elite branca baiana, que considerava absurda a teoria do Olodum, vir a ter de
aceitar um dia a validade das idéias dos negros do Pelourinho.
Desde que conheceu o
Olodum, Nina não saiu mais do “Pelô”. Seu casario colonial, sacadas e
janelas, suas igrejas exuberantes, suas ladeiras, suas praças secretas, suas
ruas estreitas de pedras, suas cores fortes, seus cheiros úmidos, sua
musicalidade permanente e variada construíam uma atmosfera peculiar. Ela gostava de ficar sentada na Cantina da Lua,
um bar tradicional que tem bebidas interessantes, como infusões contra inveja e
mau olhado, toca muito reggae e tem-se uma visão do Terreiro, onde sempre
acontecem rodas de capoeira. Ela adorava o som do berimbau e o jogo de corpo
dos capoeiristas. Subindo e descendo as ladeiras, se encantava com a beleza dos
pretos que usavam boinas coloridas e gostavam de conversar perguntando de onde
ela vinha.
-
E aí, minha preta, você não é
daqui não, né?
-
Não, eu sou de Sampa.
-
Tá gostando da cidade?
-
Ah! Salvador é jóia, ainda mais
que eu estou aqui p’ra aprender dança afro.
-
Cê quer dançar, já encontrou um
professor...
-
Você ensina?
-
Eu toco no Olodum, a branquinha
não quer ir no ensaio comigo não?
Nina admirava a
disponibilidade das pessoas, a fala mansa que ora chamava de “pretinha” ora de
“branquinha” e o jeito de tocar no corpo do outro durante a conversa, alisando
o braço ou emaranhando os cabelos. Ela aceitou o convite do negão e foi ao
ensaio para vê-lo tocar seu surdo. O tema do Olodum para o Carnaval de 88 era a
Ilha de Madagascar na costa leste africana. A canção tema Madagascar Olodum falava de uma rainha negra, Ranavalona, e tocava
na questão da miscigenação entre bantus, indonésios e árabes. Era o ano do não
ao Apartheid. O Olodum tinha se engajado na luta contra a segregação racial na
África do Sul e a viajante se empolgou com aquela exaltação a África em um
discurso anti-racista. Circulando no bairro, Nina ouviu falar que naquela noite
haveria o concurso que escolhe a Rainha do bloco, a Deusa do Ébano, uma
dançarina que é destaque no desfile do Carnaval.
Nina passou a
frequentar os dois ensaios do Olodum: aos domingos na praça principal do
Pelourinho e às terças na quadra do bloco. Afinal de contas, o ensaio era um
ambiente efervescente onde ritmos eram criados, letras construídas,
coreografias elaboradas. Uma nova estética estava sendo inventada. Ir até a
quadra do Olodum no teatro Miguel Santana ouvir samba-reggae e dançar durante
horas a fio nos ensaios do bloco era um programa quente. Nina ficava feliz em
ver que os ensaios reuniam pretos e brancos, brasileiros e estrangeiros, e que
o Pelourinho se transformava no espaço negro mais festejado da cidade.
Frequentando o bairro,
Nina conheceu de perto as atividades do Olodum que também realiza uma série de
trabalhos com a comunidade carente de seu bairro de origem. Oficinas de música
e dança, cursos profissionalizantes, seminários e debates. Entusiasmada com o
trabalho do grupo, a dançarina decidiu que faria a oficina de dança ali. Foi
até a quadra do Olodum e assistiu a uma aula. Notou a habilidade dos dançarinos
para fazer movimentos rasteiros com uso simultâneo de pernas, braços, quadril e
cabeça. Os gestos sinuosos pareciam exigir força e no entanto fluíam
livremente. Nina gostou muito do professor, um preto forte que lhe mostrou
alguns movimentos corporais. Ela o imitou e então ele disse: "você tem
ritmo, até o Carnaval você vai estar dançando como uma menina baiana".
Nina sorriu e desejou ter nascido na Bahia.
um olhar transversal - os espaços musicais negros
A ocupação física e
simbólica de certos espaços urbanos, é uma marca das organizações afro de
Salvador, constituídas nos populosos bairros negromestiços da cidade, locais de
origem dos blocos afro-carnavalescos. Esta ocupação não se dá apenas durante o
Carnaval, quando eles se constituem em espaços simbólicos para a população
negro-mestiça. Os grupos afro não têm sua existência reduzida ao período da
festa. Durante todo o ano, além dos ensaios eles realizam trabalhos junto às
comunidades na qual tiveram suas origens. Estes são portanto espaços reais,
permanentes e uma das mais importantes referências para os grupos, na medida em
que fortalece a identificação e a coesão entre os atores da cena musical
afro-baiana. Apesar de sua dispersão pela cidade, um olhar transversal permite
perceber que estes espaços têm muitos elementos em comum. Vale a pena sair
agora da posição daquele que percorre a cidade, para caracterizar em suas linhas
mais gerais esses espaços musicais negros.
Os blocos afro são a forma mais visível de expressão e mobilização
afro-baiana. Estas organizações carnavalescas se identificam e são
identificados como unidades culturais em
defesa do negro e de sua cultura, constituem-se em pólos onde questões étnicas
são colocadas em pauta e seus membros se
conscientizam de sua negritude, através da construção de uma identidade que
busca a valorização do negro em termos estéticos e culturais. A África é celebrada em seus múltiplos aspectos e
os contatos das cúpulas dos blocos afro com a África são intensos. Viagens ao
continente negro são frequentes. Muitas vezes têm mesmo o objetivo de buscar
elementos que sirvam para delimitar o contraste identitário, outras de mostrar
o trabalho do grupo em eventos relacionados com a luta dos povos negros.
Movido por
um "orgulho racial" recém-construído, o Ilê Aiyê, bloco afro pioneiro, organizado em 74, tem uma característica que lhe diferencia
especialmente: o fato de ser um bloco de negros onde é rigorosamente vetada a
entrada de associados brancos. Lançando mão do exclusivismo étnico baseado na
cor-da-pele (antes nunca explicitado como regra) denuncia, às avessas, a
intolerância dos brancos em relação aos pretos buscando assim, demolir o mito
da democracia racial.
A
movimentação negra nos espaços dos blocos afro, está calcada no sentido
genérico de “raízes africanas”. Essa referência a uma origem ancestral
pretende ser uma rejeição aos padrões culturais europeizados da camada
dominante da sociedade e procura afirmar uma memória coletiva localizada numa
África, muitas vezes, mítica e genérica. O
que é apropriado do vasto repertório africano são elementos como a
música-dança, a indumentária, algumas das variadas formas de usar os cabelos, e
a linguagem - sinais diacríticos que procuram estabelecer o contraste através
da imagem de africanidade.
A constituição de uma
identidade afro-baiana onde as tradições africanas estavam sendo reinventadas e
traduzidas em sinais diacríticos, modificavam fortemente o cotidiano das
camadas negro-mestiças que frequentavam estes espaços afro-musicais. Segundo
Clovis Moura, a valorização de modelos estéticos negros, inspirados na moda
africana "projeta o anseio de um revival
no hoje dos padrões de culturas milenares que seriam a base da
estrutura sentimental e existencial
do negro brasileiro.
Referindo-se ao Ilê Ayiê, o antropólogo Valdeloir Rego afirmou: “o Ilê foi uma
revolução no comportamento do negro baiano. Foi quando o negro deixou de alisar
o cabelo, assumir sua beleza e começou a retomar sua tradição rítmica".
Durante cinco anos (74
a 79) o Ilê Aiyê foi o único bloco afro de Salvador. Tempo suficiente para
difundir sua experiência e motivar a formação de vários outros como Olodum
(79), Malê Debalê (79), Ara ketu (80), Muzenza (81), entre muitos outros que se
organizaram sob sua inspiração ao longo da década de 80. Portanto, não era
somente no populoso bairro negro da Liberdade, que a afro-baianidade tomava
corpo. Outros pólos também periféricos como Periperi, Itapuã, Pelourinho,
davam nuances ao movimento e, os novos
grupos, embora não excluíssem a participação de brancos, não perdiam de vista a
herança do bloco matriz.
A imagem de
africanidade dos blocos afro se desenha também através da incorporação de
elementos do candomblé. O candomblé aparece neste contexto como uma referência
fundamental e muitos membros dessas organizações são adeptos da religião,
inclusive personagens-chaves, como Vovô (Antônio Carlos dos Santos), diretor do
Ilê Aiyê, que é filho biológico de Mãe Hilda e Augusto Cézar, diretor do Ara
Ketu, que é pai de santo. São muitos os elementos pinçados pelos blocos afro do
vasto repertório dos candomblés baianos.
A percussão (tocada ao
som de atabaques nos terreiros) é, como vimos, a base da musicalidade dos
blocos. Além dos ritmos percussivos, o recurso vocal (elemento melódico) também
encontra paralelos nos rituais sagrados. A técnica responsorial utilizada nos
cultos do candomblé, que consiste em uma pergunta puxada pelo solista e
respondida pelo coro e/ou pelos atabaques, foi apropriada pela produção musical
dos blocos afro e inspirou a estrutura de várias canções, onde a voz do
cantor/cantora aparece antes do som dos tambores (repiques, taróis, surdos).
Note-se nos seguintes exemplos, Protesto
Olodum, do Olodum e Canto sideral,
do Ilê Aiyê respectivamente:
"Força e pudor liberdade (vocal)
ao povo do Pelô (repiques)
mãe que é mãe no parto sente
dor(..)" (bateria)
"Hoje proeminente sua
cultura (vocal)
lapidados ao canto sideral (repiques)
dessa raça viril e colossal (..)" (bateria)
Tal como nas narrativas
míticas, a história do povo africano é recontada nas letras das canções. Todos
os blocos afro realizam pesquisas sobre a história da África, e a partir disso,
apostilas são elaboradas e veiculadas entre os compositores da entidades. Vovô,
presidente do Ilê Aiyê afirma: “Esta pesquisa é transformada em tema de música
e reescrevemos a história sob nossa ótica e não da ótica dos colonizadores”. A forma como os blocos afro veiculam os conhecimentos adquiridos nas
pesquisas sobre a África ("anualmente cada bloco escolhe um país africano
como tema, contando nas letras das músicas alguns aspectos históricos,
geográficos, culturais e políticos dessa porção do continente") se dá
através da confecção de apostilas distribuídas entre os compositores dos blocos
para que as letras das canções possam ser elaboradas.
Outro importante
elemento atrelado à construção das letras de músicas é o uso de expressões em
iorubá. O recurso à língua africana, muito presente nas canções funciona como
sinal diacrítico, pois remete imediatamente à cultura ancestral partilhada
pelos membros dos grupos. Note-se nos breves trechos das canções, Babá okê, do Ilê Aiyê e A força dos deuses, do Olodum :
“Acorda pra ver o Ilê Aiyê/ o
canto da raça africana/ fluente, baiana/ babá okê/ Oxalá e Xangô
protegem você, Ilê Ayiê (..)”.
"Futuro eu não posso
prever/ mistérios eu não vou desvendar/ bondades vou lhe prometer/ o passado a
história vai contar/ niger kaô kabiesilê/ oh meu Deus Olodum(..)".
A língua iorubá, embora
exerça influência no modo de falar baiano, mantém-se sobretudo no campo da linguagem litúrgica do candomblé e
foi, a partir daí, apropriada pelo blocos como símbolo de africanidade. Além do
uso do idioma africano nos textos das canções, os próprios nomes dos blocos são
traduções livres da língua iorubá. Malê Debalê significa " Negros
Felizes Islamizados "; Ara Ketu significa “Povo do Reino de Ketu”; Olodum
é diminutivo de “Olodumaré - Deus dos deuses”; Muzenza significa “Dança de
Iaôs”; e Ilê Aiyê, significa "Casa de Negros".
A presença do candomblé
também pode ser observada nas danças elaboradas no interior dos blocos afro.
Mantendo a tradição africana da inseparabilidade entre música e dança, os
blocos recriam as danças dos Orixás. No interior dos candomblés, através da
dança, os Orixás encarnados assumem características relativas ao mito de sua
origem e contam a história da organização da sociedade. No contexto dos blocos afro, as danças rituais são estilizadas,
trabalhadas de uma maneira muito mais livre. Nas coreografias afro-baianas
pode-se ver alguns elementos da dança africana onde o sentido do movimento se
volta para a terra, ou para chão (diferentemente do ballet, onde as pontas dos pés e os braços erguidos
sobre a cabeça, indicam o sentido do movimento para o alto). Na gestualidade
dos dançarinos dos blocos, essa mesma postura se evidencia nos joelhos
flexionados que tendem para baixo.
Embora não esteja presa
aos preceitos da religião, a dança afro exerce função narrativa nos enredos dos
blocos, e aparece para descrever os temas desenvolvidos. Note-se no depoimento
de Vera Lacerda: “Através da ala de dança nós fizemos o Ara Ketu na rua como se
fosse o cotidiano de uma aldeia da Nigéria, que é a nossa referência cultural.
E foi lindíssimo, nós ganhamos o Carnaval”. No seio do Ara Ketu se misturam a visão histórica de sua presidente,
Vera Lacerda e a visão estética e religiosa do artista plástico e pai de santo
Augusto Cézar, diretor cultural do bloco. Candomblé e pesquisa histórica se
misturam para dar consistência ao projeto de emancipação social de uma
população urbana-periférica, essencialmente negra.
A indumentária é mais
um sinal diacrítico exibido com grande cuidado pelo blocos afro. A preparação
das fantasias dos blocos está vinculada ao tema do desfile carnavalesco. No
momento inicial, tecidos africanos foram importados, mais tarde, quando
confeccionadas localmente, inspiravam-se em suas estamparias. Além disso, a
palha da costa, conchas e búzios também são utilizados, valorizando a
indumentária e conferindo-lhe mais africanidade. Os cabelos também são
criativamente trabalhados em tranças soltas ou presas de variadas formas, há
ainda o cabelo arrumado em gomos (tipo rastafari). A nova moda, difundida
principalmente nos ensaios dos blocos, é um forte elemento de identificação
entre membros dos grupos.
A principal atividade
nestes espaços negro-mestiços é a realização dos ensaios dos blocos. Todas as
semanas estão reunidos nas quadras dos blocos afro, os seus diretores, os
mestres das baterias, os percussionistas, os compositores e os associados com
seus parentes e/ou amigos simpatizantes. Os ensaios se constituíram no espaço
por excelência do processo de construção da identidade afro-baiana. Segundo
Jeferson Bacelar, "a cultura torna-se ideologia e política, na construção
da identidade do ser negro em Salvador. O seu poder de atração é enorme pela
aproximação com a vivência cotidiana dos segmentos negros". A
cultura musical tornou-se a forma privilegiada de expressão dessa identidade.
O binômio música-lazer
é, sem dúvida, o grande catalisador de imensos contingentes de jovens que se
dirigem para os eventos afro a fim de cantar, dançar e reafirmar a força e a
beleza da cultura afro-baiana. Esta mobilização acontece principalmente através
dos ensaios dos blocos afro que funcionam como local do encontro, da troca, das elaborações estéticas que permitem essa construção de
identidade. Além disso, o espaço demarcado evidencia e atualiza uma nova forma
de interação social que permitiu a disseminação de uma auto-imagem e de uma
linguagem percussiva com características particulares que os blocos afro procuraram imprimir sobretudo através do
ritmo samba-reggae, apoiado na percussão, e do discurso manifesto nas letras
das canções.
A rápida expansão dessa
forma musical, inspirada em uma África percebida como ancestral é uma questão
muito complexa que, para ser respondida de uma maneira satisfatória, exigiria um
esforço historiográfico que ainda não foi realizado. Este trabalho pretende
contribuir para esse esforço privilegiando o processo de criação de um novo
ritmo. Trata-se de compreender suas características originais e o contexto mais
amplo no qual o samba-reggae ganha sentido. No entanto, o sucesso dos bloco
afro também merece uma compreensão sociológica já que eles supõe uma forma de
sociabilidade que lhes dá suporte.
Segundo Milton Moura,
"para compreender o crescimento e a consolidação desse gênero musical é
preciso considerar o tipo de atividade que sua produção envolve. Cada bloco faz
ensaios semanais de cinco a sete horas de duração, onde são divulgadas centenas
de músicas".
O processo que desencadeou a popularidade das canções afro, não tem como instrumento
a informação mediática, onde essa produção musical foi, até 87, praticamente
ignorada. As rádios não as veiculavam, a imprensa não lhes dava espaço e a TV
sequer mencionava os fluxos culturais destes espaços da velha cidade embebidos
de musicalidade percussiva. Esse estilo musical negro estava, portanto, sendo concebido naqueles espaços, muito antes
de tornar-se visível nos meios de comunicação.
Durante os ensaios dos
blocos afro, ao longo do ano, as músicas são continuamente tocadas e rapidamente
tornam-se conhecidas. "Quando se faz o concurso que aponta as músicas que
serão levadas ao Carnaval, já se sabe quais delas agradaram mais ao pessoal
presente nos ensaios. Algumas vão sendo divulgadas na praia, nas festas, nos
bares, na rua". A
produção de canções tornou-se uma forma de militância que buscava um padrão de
negritude que fosse um parâmetro de referência para o grande contingente negro
de Salvador. Aliado ao comportamento manifesto havia uma produção de discurso
anti-racista, que se expressava sobretudo nas letras das canções, onde os
bairros negros são sempre reafirmados e exaltados como espaços autônomos.
Confira nos trechos das canções O mais
belo dos belos/charme da Liberdade, do Ilê Aiyê; Lendas e Magias, do Malê Debalê; e Minha história, do Ara Ketu,
respectivamente:
"Quem é que sobe a ladeira
do Curuzu?/ e é a coisa mais linda de se ver, é o Ilê Aiyê/ o mais belo
dos belos, sou eu, sou eu/ bata no peito mais forte e diga: eu sou Ilê/ não me
pegue não, me deixe a vontade/ deixe eu curtir o Ilê, o charme da Liberdade/
é tão hipnotizante o suingue desta banda/ a minha beleza negra/ aqui é você
quem manda(..)"
"Lendas e magias, mistérios
da evolução/ esse é o Malê Debalê, riqueza de uma nação/ entoação de canto
afro/ Ibá Fokomim criou/ me levou ao Abaeté e ali me batizou/ não entre
em transe seja transado no Malê Debalê(..)/ eu sou feliz porque sou negão/ eu
sou feliz porque sou Malê/ olha a lenda ê ê/ olha a lenda Malê"
"Vou me embalar ô s'embalae
ê/ Periperi faz parte da minha história/ e o subúrbio presente na minha
memória/ chega o domingo subo de trem, desço de trem/ vou pro Ara Ketu curtir o
suingue/ com você meu bem na quadra do Ketu/ exaltando e encantando/ mostrando
o suingue do povo de lá/ quem vem lá com seu ofá/ trazendo justiça e sorte/
nada de morte(..)"
O ensaio, onde essas
canções são veiculadas, se constitui no momento do encontro, onde os membros do
grupo partilham suas ideologias, valores, gostos e interesses, reiterando a
opção por um grupo. Dessa ocupação depende a vitalidade e a conservação do
espaço musical. Mas não é apenas a movimentação dos ensaios que garante a
constituição dos espaços negros. Os blocos afro desenvolvem uma série de outras
atividades de grande importância para as comunidades locais. Há todo um
trabalho educacional voltado para crianças e adultos que implica na formação de
oficinas de música e de dança, onde são formadas as bandas de percussionistas
mirins e as coreografias afro-baianas são elaboradas. Outras atividades como
cursos de capoeira, entendida como legítima expressão de cultura negra e cursos
de teatro que buscam a formação de atores negros também são oferecidos pelas
organizações mais estruturadas.
Além destes há uma
variedade de cursos profissionalizantes, geralmente relacionados aos interesses
dos blocos, como por exemplo, Corte e Costura, onde os alunos são aproveitados
para a confecção das fantasias dos blocos; cursos de estamparia, onde os
tecidos de inspiração africana são confeccionados; ou ainda cursos para
cabeleireiras, onde se formam as trançadeiras responsáveis pelos penteados
afro. A maior parte dessas atividades vem sendo desenvolvida por todos os
blocos de grande porte da cidade, que já têm seus espaços constituídos. Este
tipo de atividade permitiu que os grupos afro alcançassem uma representação
significativa nas comunidades locais. Esta foi mesmo a intenção da presidente
do Ara Ketu, Vera Lacerda: “Não queria que o Ara Ketu fosse apenas uma entidade
carnavalesca, mas sim que exercesse um trabalho social mais amplo, que
conseguisse melhorar o nível de informação e vida da periferia marginalizada". O trabalho social realizado pelos blocos afro levou a Prefeitura de
Salvador a considerá-los entidades de utilidade pública.
Finalmente, é preciso
enfatizar que para além das semelhanças entre os blocos afro existem nuances
que os diferenciam e os contatos com a África serviram para pluralizar o
imaginário dos grupos afro alimentado pelo continente negro. Existem diferenças
entre os blocos afro, no plano do imaginário que um esforço comparativo permite
apontar.
O Ilê Aiyê se volta
para uma “África tradicional” em busca de seus sinais de identificação.
Pinça seus elementos estéticos em pequenas comunidades africanas que
representam uma "África tribal", anteriores às lutas independentistas
dos anos 70, e dela retira os elementos que constroem a sua ancestralidade
simbólica.
Já o Ara Ketu se
espelha numa “África moderna”. É para os grandes centros urbanos do
continente negro que os diretores do Ara Ketu viajam, a fim de pesquisar a
modernidade musical africana, que não dispensa uma tecnologia altamente
sofisticada, para empreender seus experimentos sonoros, claramente inspirados
na moderna música africana, como veremos no primeiro capítulo.
O Malê Debalê por ser um bloco de pequeno porte, sem grande
capacidade de negociação, estabelece raros contatos diretos com a África. É uma
entidade pouco festejada pela mídia e a sua popularidade está circunscrita a
seu bairro de origem. Sua referência cultural mais forte está na história dos
negros islamizados da Bahia, que protagonizaram a revolta dos Malês em 1835, uma
das mais vigorosas insurreições de escravos que envolveu africanos nagôs e
haussás convertidos ao Islã. O bloco tematiza a cada Carnaval, uma “África
mística” que mistura islamismo e candomblé.
O bloco
afro Olodum transformou-se em um Grupo Cultural e investe alto na educação de crianças carentes do bairro que passam a
ser alfabetizadas pelo bloco. Quanto mais se impregnava de um discurso
anti-racista acadêmico mais se constituía enquanto uma intelectualidade
orgânica, de grande peso no movimento negro baiano,
dedicada a uma pesquisa histórico-antropológica, que visava o resgate da
ancestralidade negra culta, apontando desta maneira, para uma “África científica”.
Diferentemente do Ilê
Aiyê, do Ara Ketu, do Malê Debalê e do Olodum, o Muzenza é o único bloco afro
sem território fixo, o Muzenza já ensaiou na Ribeira, na Massaranduba, no Largo
do Tanque, e hoje sua sede volta a ser na Liberdade (local onde a entidade se
organizou inicialmente), sendo que seu escritório funciona no Pelourinho. Este
caráter itinerante aponta para uma “África nômade", que tem como pilar os
signos panafricanistas da Jamaica. O símbolo do bloco é o Leão de Judá, título
que cabe a Hailé Selassié ou Ras Tafari, o imperador da Etiópia, endeusado na
Jamaica pelos seguidores do rastafarianismo. É
também chamado Muzenza do Reggae, tal o
seu envolvimento com o ritmo, tendo Bob Marley como ícone maior. Estabelece
assim um contato indireto com a África através de uma ligação simbólica com um
dos países da diáspora africana.
Estas sutis
diferenciações de perfil, entretanto, não desagregam os blocos afro enquanto
movimento articulador de uma estética afro-baiana e suas atividades apontam
para uma importante mudança: a nova produção de cultura negra na Bahia, a
partir do sucesso crescente da estética percussiva, sai dos espaços
tradicionais como o candomblé, a capoeira e o Carnaval passando a atuar no
cenário das mídias, estabelecendo uma estreita ponte com mercado da música. A
invenção do samba-reggae é o pivô deste processo.
Bom dia, Goli Guerreiro. Sou estudante de Letras, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB e estou prestes a me formar, somente falta a bendita monografia e pretendo falar do (que descobri hoje que se chama a terceira diáspora) pagode baiano, enquanto (sub) gênero musical com foco nas músicas que tocam nas questões étnico-raciais e territórios subalternos (favelas, morros etc.). Ano passado comprei um de seus livros, "A Trama dos Tambores", para embasar a bendita este ano e pelo que li estou gostando muuuito! Aproveitando a descoberta do seu blogue, percebi que há fixado no mesmo dois links para livros que tratam desta nova diáspora, porém os links estão OFF e não se pode baixar os arquivos. Se ler este comentário e puder me mandar os links ou arquivos dos supracitados livros, ficarei muito grato. Parabéns pelos grandes trabalhos sobre nossa cultura!
ResponderExcluir